Por Jeferson Miola
Para a elite brasileira, a justiça só deveria ser aplicada contra as 130 milhões de “Angélicas” do Brasil. E sempre com o intuito de punir, banir e sacrificar, jamais o de julgar com decência.Angélica Aparecida de Souza Teodoro, jovem negra, moradora da periferia da metrópole, mãe precoce desde os 16 anos, desempregada, filha de pais pobres e negros, abandonada da escola, excluída da sociedade, indefesa, seqüestrada no direito de ter futuro e desamparada pela Justiça.
Em 16 de novembro de 2005, aos 18 anos, Angélica foi encarcerada numa cela fétida do Cadeião Pinheiros, na capital paulista, juntamente com outras mulheres acusadas de cometimento de variados tipos de crimes. O motivo do encarceramento foi a tentativa de furto de um pote de margarina de valor de R$ 3,20, ocorrida num mercadinho próximo à sua casa. Esse tenebroso crime, sofisticado com o ocultamento da margarina dentro do boné que usava, foi cometido num momento de desespero, pois, segundo suas próprias palavras, “não agüentava ver o filho de dois anos passar fome”.
Angélica sofreu um julgamento célere na 23ª Vara Criminal de São Paulo, sendo condenada a quatro anos de prisão em regime fechado. Teve três habeas corpus negados pelo Tribunal de Justiça de SP [observe-se que a palavra “negados”, neste preciso contexto, parece etimológica e racistamente significar “prôs nêgos”]. Por isso, ficou presa durante 128 dias, só sendo libertada em 23 de março de 2006 depois da obtenção de um habeas corpus junto ao STJ.
Entre o pedido e a concessão do habeas corpus a Angélica, transcorreram sete dias de árduos trabalhos do STJ. Bem diferente, portanto, da agilidade daquele Tribunal em conceder liberdade a juízes, empresários e políticos brancos, endinheirados, influentes, bem relacionados nas esferas do poder, assaltantes de dinheiro público e implicados pelas operações Anaconda, Furacão e Navalha da Polícia Federal.
De qualquer modo, Angélica “reconquistou a liberdade” em 23 de março de 2006, mas em função do grave crime cometido, passaria a cumprir prisão em regime semi-aberto, tendo o dia para trabalhar e a noite a ser dormida na prisão!
A história de Angélica é a história de 130 milhões de brasileiras e brasileiros desvalidos e desamparados por razões étnicas, sociais, econômicas, escolares, raciais, de gênero ou de gerações. É a história daqueles que, em modo perverso, constituem a verdadeira República sem privilégios, favorecimentos, jeitinhos e apadrinhamentos.
Faltaram, no caso de Angélica, manifestações loquazes e insurgentes de políticos, magistrados e doutos contra a injustiça cometida. Manifestações com a mesma contundência hoje feitas por políticos, magistrados e doutos combatendo o trabalho republicano da Polícia Federal. Não atacam a PF em vão. Sabem que fazem-no com segundas intenções de desmoralizar e interditar o trabalho da instituição, pois quem determina ou relaxa prisões é o Judiciário. A polícia cumpre o que a Constituição manda: investiga, produz provas e indícios e remete ao Judiciário para julgamento.
O Brasil arcaico e patrimonialista ainda tem uma elite privilegiada ocupando o miolo do poder de Estado e que esperneia contra o esforço de modernização e republicanização do país. Esta elite que reluta ferozmente contra toda e qualquer ameaça aos interesses e privilégios acumulados. Protege-se numa genuína solidariedade de classe e espírito de corpo. Para essa elite, a Justiça só pode ser aplicada nos da classe de baixo, quando for para criminalizar e condenar 130 milhões de “Angélicas”. Uma elite que se considera intocável, insuscetível à Lei de Todos.
Um comentário:
Ótimo texto.
Resume muito bem como funciona esse feudo que é o Brasil.
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