quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Gaza é transformada na Guernica do século 21


Jeferson Miola [*]
Publicado no site brasilianas.org http://www.advivo.com.br/materia-artigo/gaza-e-transformada-na-guernica-do-seculo-21 e no blog do Luis Nassif - http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/gaza-a-guernica-do-seculo-21

A história é uma lição para se refletir, não para se repetir.
Carlos Drummond de Andrade

A pintura não é feita para decorar apartamentos. É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo”.
Pablo Picasso, autor de “Guernica”, obra-prima executada cinco meses depois dos devastadores ataques à cidade.


Israel converte Gaza na Guernica do século 21. Esta é uma terrrível estupidez que ofende a condição humana. Com a complacência criminosa das potências que mandam no mundo.
Em 26 de abril de 1937, no contexto da Guerra Civil Espanhola, a pedido do General Francisco Franco, a aviação nazista de Adolf Hitler - escoltada por caças da força aérea fascista de Benito Mussolini -, bombardeou Guernica, cidade-símbolo dos bascos. Aquele ataque mortífero de 75 anos atrás serviu como laboratório e campo de testes para as operações do Terceiro Reich na Segunda Guerra mundial, que começaria dois anos mais tarde.
Guernica foi o ensaio nazi-fascista de onde surgiu a estratégia de “bombardeios científicos”. A guerra convencional, até então travada em combates entre exércitos em terra, deu lugar  à chamada “guerra total”. A Luftwaffe [aviação da Alemanha nazista] empregou pela primeira vez bombas incendiárias e de fragmentação nos lançamentos contra Guernica. Foi produzida uma destruição impressionante – 80% dos edifícios transformados em escombros, a infra-estrutura elétrica, de água e transportes colapsada e centenas de cidadãos bascos mortos.
Guernica serviu como o palco no qual os nazi-fascistas puderam sedimentar os novos conceitos e princípios de guerra: o terror contra populações civis, a devastação material, a desmoralização dos inimigos e a intimidação psicológica. Dois anos depois de Guernica, em setembro de 1939, a Luftwaffe bombardeou Varsóvia, iniciando a longa vaga de bombardeios aéreos durante a Segunda Guerra mundial, cujo desfecho foi a explosão atômica de Hiroshima e Nagasaki, promovida pelos EUA em agosto de 1945.
O governo de Israel transforma a estreita Faixa de Gaza na nova Guernica da história da humanidade. A diferença é que Franco, Hitler e Mussolini devastaram Guernica em três horas, ao passo que Israel dizima o povo palestino a conta-gotas, dia após dia, ano após ano. O ciclo vicioso da monstruosidade contra o povo palestino se repete a cada véspera de eleições em Israel. Para angariar votos internamente, os israelenses praticam o martírio de inocentes – crianças, mulheres e homens palestinos de todas as idades são barbaramente mortos.
Os palestinos, como numa ironia da história, parecem estar pagando o preço do sofrimento imposto às populações judias durante o holocausto. Confinamento, segregação e terror fazem parte do léxico da guerra de extinção promovida por Israel. Muitos vivem a humilhação dos campos de refugiados, vítimas de ódio racial, observando impotentes a ocupação ilegal do território que pertence a eles. O direito a viver é uma simples ilusão de sobrevivência para quem sofre a devastação das suas cidades, das suas escolas, dos seus hospitais, das suas casas, das suas famílias e das próprias vidas.
Repudiar a monstruosidade do passado não é suficiente. O essencial é impedir sua repetição. As potências mundiais, todavia, não só permitem a repetição daqueles métodos bárbaros, como apoiam militarmente, politicamente e materialmente a execução deles. 
O mundo não encontrará a paz enquanto não houver uma resolução aceitável e digna do conflito do Oriente Médio. Este conflito é produto da imposição à força do Estado de Israel como um enclave naquela região. As potências mundiais, com os EUA à frente, foram responsáveis diretos para sua origem, e são o único fator que pode dar fim àquela barbárie.
Mas, com sua complacência e seu jogo de interesses na região, tristememente parodiam Guernica em Gaza. Esta atitude configura não só um crime de lesa-humanidade, mas encaminha o mundo para um contexto convulsionado e imprevisível.
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[*] Foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas no Brasil de 2001 a 2005.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A direita brasileira e o “internacionalismo reacionário”



Jeferson Miola [*]
Publicado na Agência Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5864

Políticas golpistas disseminam-se pelo continente americano. À medida em que os governos progressistas e de esquerda vão sendo sucessivamente eleitos, reeleitos e alguns re-reeleitos, novas modalidades conspirativas vão sendo testadas e postas em prática.
A dependência e submissão não só econômica, mas ideológica e cultural dos países da região às potências dominantes, promovidas pelas burguesias e oligarquias nacionais, faz parte de uma época superada do passado. A  realidade atual, de independência e ao mesmo tempo de integração sul-sul, entretanto, não é aceita tanto pelas burguesias e oligarquias colonizadas quanto pelo capital estrangeiro colonizador.
Entre os anos 1960 e 1980, a submissão dos países latino-americanos aos interesses imperiais era processada à força, com a imposição atemorizadora dos canhões e das metralhadoras. Naquela época, multiplicaram-se os golpes de Estado para a implantação de sangrentas ditaduras civis-militares. Os atentados à democracia não somente eram do conhecimento dos EUA, como contavam com seu protagonismo ativo em inúmeros terrenos: na concepção intelectual, no financiamento, na inteligência, no treinamento e no armamento dos setores civis-militares golpistas.
As ditaduras instaladas contavam com inconfessável e claro apoio das classes dominantes, dos poderes judiciais e das imprensas nacionais de cada país. As ditaduras foram funcionais aos interesses do capital estrangeiro, assim como dos capitais nacionais nelas engajados. Os principais conglomerados financeiros, empresariais, econômicos e midiáticos que exercem enorme poder na atualidade, foram extraordinariamente fermentados naquele período.
Recentemente foram publicados resultados parciais das averiguações efetuadas pela Comissão da Verdade do Brasil. Se pôde finalmente saber que cerca de 2.000 índios da região norte do país foram dizimados pela ditadura civil-militar para assegurar projetos privados. Parte dos índios foram torturados e fuzilados para delatar os militantes da guerrilha do Araguaia. Mas algumas áreas foram apropriadas e os índios residentes mortos, para viabilizar a instalação de empresas multinacionais e grandes empresas nacionais que se dedicam ainda hoje à exploração da terra, dos recursos naturais e das riquezas da região.
Por essa razão o restabelecimento da verdade, da memória e da justiça relativamente a aquele período é ardorosamente obstruído. Se repete o mantra de que se deve “deixar de olhar para trás”. Os defensores desta idéia cínica buscam, com isso, ocultar a verdade sobre a atuação sombria que tiveram num passado não menos sombrio.
A mídia que se organiza sindicalmente na SIP [Sociedade Interamericana de Imprensa] editorializa em todos seus veículos associados esta visão amnésica. No campo jurídico, setores dos poderes judiciários obstruem os trâmites legais para a revisão das leis que anistiaram e indultaram os torturadores.
A Argentina é, neste caso, honrosa exceção e exemplar paradigma.
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Com a derrubada das ditaduras civis-militares, veio uma onda de governos conservadores de índole liberal-democrática: Alfonsin na Argentina, Tancredo/Sarney no Brasil, Sanguinetti no Uruguai, Patrício Aylwin no Chile, Wasmosy no Paraguai. Tiveram ciclo único de duração, necessário para conduzirem as transições conservadoras para o atual estágio de democracia liberal.
Os anos 1990 foram da avalanche de eleições de governos neoliberais: Menem na Argentina, Collor/FHC no Brasil, Lacalle/Sanguinetti/Batlle no Uruguay, Andrés Pérez na Venezuela, Eduardo Frei/Ricardo Lagos no Chile.
Nesta etapa de domínio neoliberal, o “deus-mercado” se encarregou de dar continuidade ao empreendimento da acumulação capitalista que antes necessitava de ditaduras. As democracias foram novamente vilipendiadas, porém dessa vez dentro da institucionalidade e, por isso mesmo, com uma fachada de legitimidade.
Aqueles governos implementaram as chamadas “reformas modernizadoras” do capitalismo na fase de globalização financeira: privatizações, reeleições presidenciais, destruição das políticas sociais de Estado, reestruturação do mundo do trabalho com eliminação de direitos, etc. Tais reformas foram asseguradas através de mudanças constitucionais por maiorias parlamentares “arregimentadas em espécie”. 
No período da êxtase neoliberal, o continente testemunhou a mais exuberante alavancagem dos interesses do capital financeiro, das finanças globais e das economias centrais do capitalismo, em coordenação com os capitais nacionais da região. A ALCA, Área de livre comércio das Américas, por um lado representava o mais ambicionso projeto de colonização dos EUA para a região, e também significava regionalmente o estágio superior da ordem neoliberal e da inserção passiva e subordinada das economias nacionais no mundo globalizado.
A conspiração contra a democracia, naquela época, se dava através da perda de soberania e de autonomia dos povos e nações. A transferência de poder real ao capital financeiro impondo os “contratos” garantidores de sua livre circulação e especulação, atentou contra a auto-determinação dos povos. Converteu as eleições em mero fantoche de uma pantomima democrática que não admitia alternativas ao pensamento único. Em lugar do exercício da consciência, o sistema se alimentava da chantagem feita sobre sua própria debilidade: ruim com o neoliberalismo deletério e devastador; o caos sem ele! 
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O mapa político-ideológico da primeira década do século 21 começou a ser desenhado nos finais dos anos 1990 e início dos 2000. Os efeitos sociais de décadas de estagnação econômica e de sacrifícios impostos animaram o surgimento de amplas resistências aos governos neoliberais. A legitimidade do Consenso de Washington foi posta à prova, devido à falência de suas promessas de prosperidade, paz e progresso.
Começaram, então, as vitórias de partidos progressistas e de esquerda em muitos países do hemisfério, principalmente da América do Sul. Depois da vitória eleitoral de Chávez na Venezuela em 1999, se seguiram as conquistas de Lula, Néstor Kirchner, Tabaré Vázquez, Evo Morales, Rafael Correa, Daniel Ortega, Fernando Lugo, Maurício Funes. Outros presidentes com inclinações nacionais-desenvolvimentistas e populares, como Michele Bachelet e Manuel Zelaya, igualmente foram eleitos nessa mesma toada.
Mesmo com as contradições, os limites e as singularidades de cada um dos processos nacionais, é evidente que se está em um momento histórico de deslocamento de interesses e de poder nas políticas domésticas, assim como nas relações sul-norte e sul-sul. A nova agenda que está sendo construída na região representa ameaças aos setores dominantes, da mesma maneira que as agendas das reformas populares e de distribuição de renda os ameaçavam nas décadas de 1960 e 1970 e que foram, então, pretexto para os golpes civis-militares.
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Na atualidade, os golpes clássicos - com exércitos, repressão, baionetas e Estados de Sítio – não passariam. Ao contrário, desencadeariam fortes resistências sociais e populares. O ciclo em curso, de desenvolvimento com distribuição de renda e diminuição da pobreza, lamentavelmente tem como contrapartida novas modalidades conspirativas levadas a efeito pelas elites conservadoras e de direita. Ou, como analisa Samuel Pinheiro Guimarães [ ], “as classes tradicionais hegemônicas promovem um neogolpismo na América do Sul, e a democracia está em risco na região”.
A chantagem eleitoral e a falácia da inevitabilidade do neoliberalismo – os venenos mortais contra a democracia nos 1990 – cederam lugar a investidas conspirativas não menos sutis, porém muito ameaçadoras.
Em abril de 2002, com a participação dos EUA, a direita venezuelana sequestrou Chávez, usurpou seu mandato popular e tomou posse em um rito sumário e ilegal. Tudo televisionado. Passados poucos dias, os golpistas foram desalojados, e apesar dos crimes cometidos, receberam o magnânimo indulto de Chávez. Após aquele evento, todas as demais tentativas de golpes que se sucederam, prescindiram das armas. A direita golpista passou a atuar no “terreno institucional”, via os poderes Legislativo e Judiciário. A sabotagem sistemática, a recusa a participar de eleições e ataques histéricos cotidianos da mída do país passaram a ser os métodos de ação da direita venezuelana.
Em Honduras, o Presidente Manuel Zelaya foi arrancado de pijama de sua residência e enviado para o exílio na Costa Rica. O Judiciário o condenou, em julgamento viciado e sem o devido processo legal, e mandou executar a ordem judicial durante a madrugada do dia 28 de junho de 2009. Um golpe desferido por partidos políticos da direita hondurenha em cumplicidade com o Judiciário e setores midiáticos e apoiados pelos EUA. Depois de declarar compromisso com a reforma agrária e de propor ao congresso reformas constitucionais de recorte popular, o mandatário teve surrupiado o mandato conferido pelas urnas, com a alegação de “traição à pátria”.
Em setembro de 2010, a pretexto de uma crise com policiais em greve, foi tentado um golpe de Estado contra Rafael Correa, no Equador. Novamente a oposição de direita tentou surrupiar à força o mandato que perdera nas urnas. A elite equatoriana, uma simbiose do “american way of life” inclusive na moeda local dolarizada, faz reverberar mundo afora que o país vive um totalitarismo que tolhe o direito de expressão e a liberdade de imprensa. O patético é que o país que asila o principal símbolo da liberdade de expressão no mundo contemporâneo, o fundador do wikileaks, Julio Assange, sofre tais imputações.
Na Bolívia, Evo Morales enfrenta seguidamente iniciativas conspirativas que visam desastibilizá-lo. As oligarquias afetadas pelas políticas do recém erigido Estado Plurinacional da Bolívia, recebem apoio dos EUA no intento de derrubar Evo. Procuram, desse modo, recuperar o poder de controlar as riquezas minerais e energéticas do país segundo os interesses estrangeiros. A classe dominante boliviana se prevalece de medidas judiciárias e legislativas, e também de infiltrações e insuflações dos movimentos sociais indígenas e de ongs.
No Paraguai, em junho passado a direita golpista do país derrubou Fernando Lugo no que pode ser considerado o mais rápido e breve juízo político que se tem notícia na história. Em menos de 24 horas, os conspiradores iniciaram o impeachment de Lugo, o intimaram, seccionaram no Congresso e deliberaram pela destituição do cargo. Em seguida, o Judiciário ratificou a medida e a mídia construiu o ambiente de “normalidade democrática”. Apoiados pelos EUA e pela Igreja Católica, os golpistas paraguaios alegaram como motivo a instabilidade social, quando a real motivação para o golpe foi a reforma agrária iniciada por Lugo e a desconcentração de terras que se encontram em mãos de particulares e de mega-empresas estrangeiras.
Na Argentina, onde a memória da ditadura civil-militar dói em carne viva – mais de 30 mil pessoas foram mortas ou desaparecidas –a fração latifundiária-oligárquica da classe dominante, em articulação com os meios de comunicação e com o reacionarismo urbano-industrial-financeiro, tentou provocar um blecaute no país nos anos 2008/2009. Instalaram um clima de instabilidade, desabastecimento, sabotagem e de constantes ameaças de instalação de juízo político.
A direita argentina difama sistematicamente o governo com impressionante virulência – acaba danificando a imagem do próprio país – junto a instâncias estrangeiras, como a SIP, o FMI, Banco Mundial, OEA e outras. Vende internacionalmente uma idéia de caos e inviabilidade, tentando angariar simpatia externa para uma investida final. Com a implementação da lei de democratização dos meios de comunicação, uma direita histérica e irascível ataca o governo e a presidente Cristina Kirchner com ofensas e calúnias que em qualquer país do mundo seriam suficientes para uma condenação judicial. O grupo Clarín, que é associado à SIP, consolidou seu monopólio atual ilegalmente durante a ditadura [também recebeu inestimável apoio de Menen]. E hoje é o principal instrumento da guerra em curso contra o governo Cristina.
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No Brasil, a direita tentou desde o primeiro mandato de Lula levá-lo ao juízo político no Congresso. Com o franco apoio da mídia, e através de artimanhas tramadas com o Poder Judiciário, a oposição reacionária foi incansável durante os dois mandatos presidenciais de Lula. O Presidente teve aproximadamente 85% das manchetes e reportagens contra ele, mas apesar disso concluiu o último mandato com mais de 85% de aprovação popular. As políticas executadas durantes seus governos, que trouxeram à vida civilizada mais de 40 milhões de pessoas e que melhoraram a vida de outros milhões, impermeabilizaram Lula ante uma imprensa, uma oposição e um judiciário inescrupulosos e sem limites na sua ânsia golpista. É uma performance pessoal capaz de irritá-los, desnorteá-los e desencadear neles um sentimento de ódio e, ao mesmo tempo, de impotência.
A direita golpista arquitetou com maestria seus movimentos políticos e a judicialização da política. Colocaram o julgamento do chamado “mensalão” no coração das eleições municipais deste ano. Nem mesmo paternidade do PSDB deste esquema e a precedência das ações judiciais contra dirigentes tucanos comoveu o Supremo Tribunal a iniciar o julgamento pelos agentes daquele partido.
O STF foi partidarizado, e convertido no braço conceitual e propagandístico da mídia e da oposição. O julgamento foi montado como uma poderosa arma de “destruição semiótica” [ ] do PT. O STF abala a institucionalidade democrática e promove o que Wanderley Guilherme dos Santos caracteriza, com rara pertinácia, como sendo “um julgamento de exceção” [ ].
Nesta recém-chegada primavera de 2012, a direita, a mídia, o Judiciário e os parlamentares do DEM, PSDB e PPS comandam uma verdadeira sinfonia conspirativa. Seguem um script há muito manjado. Primeiro a revista Veja publica uma reportagem baseada em supostas conversas havidas por um sobrinho de um colega de escola do filho do vizinho de um delator que ouviu o porteiro da fábrica do patrão de nome “Civita Gurgel Mendes-Barbosa Marinho Serra Maia” comentar que Lula mandou assassinar um ex-prefeito do PT e que ele também comandava o “mensalão” desde a garagem do Planalto no final do expediente de trabalho. Uma fantasia delirante!
Em seguida, o Procurador-Geral da República, com a solenidade daqueles homens “justos e isentos”, comenta com aparente parcimônia que “ainda que o assunto seja gravíssimo”, se deve acompanhar a “evolução da denúncia” – mas não faz menção à presumível inocência quando não há provas e, neste caso, razoabilidade.
Os Ministros do STF, também aparentando isenção magistral, afirmam ser necessário confirmar a veracidade, “mas que se tratam de questões seríssimas, que mereceriam rigorosa apuração”. No alto de sua magnanimidade, os doutos do Supremo anunciam que “ainda não é momento para um depoimento do ex-Presidente” [sic]. Mas ansiam pela hora de levá-lo ao banco dos réus.
Com a senha dada, a mídia se lambusa em editoriais, reportagens, colunas, programas e toda sorte de manipulação escrita, em áudio e em vídeo. Na fase inicial do julgamento do chamado “mensalão”, com a maior desfaçatez o ministro Joaquim Barbosa aludiu que em depoimento no curso da ação 470, a própria Presidente Dilma [quando então Ministra da Casa Civil] “teria se surpreendido” com a facilidade de aprovação de determinado projeto no Congresso. Ele quis insinuar, com isso, que Dilma “teria suspeitado” que a bancada governamental “teria sido comprada”.
Eles têm alguns objetivos fundamentais. Um deles é implicar Lula no caso e arrastá-lo para a arena midiática-judicial para, posteriormente, atingir também Dilma. Querem inviabilizá-lo eleitoralmente e, na continuidade, inviabilizar o projeto reeleitoral de Dilma. Como acusação para sustentar isso, basta uma invenção estapafúrdia da revista Veja que o Procurador-Geral replica, os ministros do STF dão trela e a mídia promove a maior fanfarra.
Outro objetivo é atingir moralmente Lula e seus dois mandatos presidenciais. Ao lado da judicialização da política, o apelo hipócrita à moralidade é uma espécie de “bala de prata” da direita golpista. Querem escrever uma nova narrativa a respeito dos mandatos presidenciais do Lula, manchando-os como se tivessem sido infestados de corrupção e imoralidades. A simples confrontação com a realidade e com a razão objetiva evidencia que em todos os aspectos [anotadas algumas contradições ideológicas] Lula realizou uma obra sob todos os ângulos muito superior aos 500 anos [com breves intervalos] que eles comandaram o Brasil. Como eles não conseguem transplantar as evidências dos fatos e do mundo real, apelam para a desconstituição simbólica através de farsas.
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A classe dominante brasileira não aceita e não se conforma que o Brasil tenha se transformado profundamente e se constituído numa verdadeira Nação pelas mãos de um operário metalúrgico, nordestino migrante, um sobrevivente da pobreza e sem curso universitário. Eles até reconhecem que Lula não fraturou a ordem burguesa e que presidiu o Brasil beneficiando o povo brasileiro sem colocar em risco seus interesses enquanto classe dominante; mas lhes tira o sono que a autoria desta extraordinária obra é dele.
Foi Lula, e não qualquer representante orgânico da classe dominante, quem modernizou o capitalismo brasileiro, ainda que este fato represente uma derrota ideológica-cultural para a equerda no longo prazo e um retrocesso na acumulação da luta socialista e por uma sociedade igualitária.
Lula alçou o Brasil ao seu lugar merecido no mundo. E se converteu em um líder mundial reconhecido e, não raras vezes, imitado inclusive por oportunistas de direita para vencerem eleições nos seus países. Lula é doutor honoris causa em muitas universidades do mundo e referência obrigatória em consagradas academias. Isso porque foi o melhor professor que o oprimido e espoliado povo brasileiro já teve. Pela primeira vez em 150-200 anos da história do Brasil, jovens descendentes de famílias cujos ancestrais sequer foram alfabetizados, conseguem frequentar os bancos da universidade.
Para o povo brasileiro e para a história do Brasil, Lula transcendeu a condição humana, convertendo-se desde já num mito em vida. O ódio e o recalque são os sentimentos nutridos pela classe dominante brasileira, porque não foi um filho seu que esteve à frente da transformação do Brasil.
Não lhes conforta a idéia de que Lula faça parte da história, enquanto seu expoente maior, o príncipe FCH, tão somente faça parte de um triste passado que ensinou o be-a-bá da destruição de uma Nação.
A classe dominante não arreda pé dos seus interesses, quando os sente ameaçados por políticas de distribuição de renda, de justiça social e de igualdade. Ela luta, com todos os métodos à sua disposição – sobretudo os mais baixos e desonestos – para preservar seus interesses. Sempre foram assim, tanto no passado como estão sendo no presente. Em todas as partes do mundo, e também no Brasil.
A direita política é, por natureza, golpista e conspiradora quando diante de projetos que possam contrariar seus interesses históricos. A direita é, por definição, apátrida. Ela se articula num tipo de “internacionalismo reacionário” para conservar seus interesses de classe dominante que é causadora de exclusão, de opressão e de alienação – o Plano Condor é eviência disso.
Ao “internacionalismo reacionário”, deve ser contraposto o internacionalismo democrático-popular e solidário, encharcado em uma visão libertária e democrática do mundo.
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[*] Foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas no Brasil de 2001 a 2005.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Derrota inclemente



Derrota inclemente

Jeferson Miola


O pensamento racional claramente aconselhava os troianos a suspeitarem de um ardil quando acordaram verificando que todo o exército grego desaparecera, deixando apenas estranho e monstruoso prodígio à frente das muralhas da cidade. O procedimento racional deveria ter sido, ao menos, examinar o cavalo em busca de inimigos, tal como foram veementemente aconselhados por Cápis o Velho, Laocoonte e Cassandra. Essa alternativa esteve presente e bem viável, mas foi posta de lado em favor da autodestruição.
Barbara Tuchman, em “A marcha da insensatez”.


Barbara Tuchman, em seu memorável livro “A marcha da insensatez”, desvenda a tendência paradoxal que possuem autoridades, políticos e instituições de produzirem políticas contraproducentes que, ao fim, contrariam seus próprios interesses.
Como parte do exaustivo apanhado histórico que realiza, a autora estadunidense examina desde a Guerra de Tróia, passando pelos papados da Igreja Católica na Idade Média, até os anos 1970, em que analisa as armadilhas que os EUA produziram contra si mesmo com a estratégia de guerrar no Vietnã.
Em suas brilhantes análises, a autora demonstra como decisões desatinadas e carentes de racionalidade em algumas realidades produziram destruição e tragédias. Diz ela, com uma crítica lancinante: “sendo óbvio que a perseguição de desvantagem após desvantagem é algo irracional, concluímos, em conseqüência, que o repúdio da razão é a primeira característica da insensatez. As sucessivas medidas adotadas com respeito tanto às colônias americanas como quanto ao Vietnã eram tão nitidamente baseadas em atitudes preconceituosas e tão perfeitamente contrárias ao senso comum, às inferências racionais e aos conselhos judiciosos, que, como insensatez, falam por si mesmas”.
As escolhas do PT para as eleições municipais de Porto Alegre merecem ser vistas sob o prisma de uma verdadeira “marcha da insensatez”. O PT em Porto Alegre não sofreu uma derrota qualquer; foi uma derrota inclemente. E não foi uma derrota de um PT qualquer, mas a derrota de um PT que acumulou a experiência de governar a cidade por 16 anos e que construiu importantes referências para o país e para o mundo de resistências e de construção de alternativas democráticas ao neoliberalismo.
O desempenho em Porto Alegre não guarda absolutamente qualquer coerência com o padrão de desempenho do Partido no Rio Grande do Sul e no Brasil. Tanto no estado como no país, foi a sigla mais votada, a que mais ampliou o número de prefeituras conquistadas e a que teve o maior incremento do número de vereadores eleitos.
Desde sua fundação, em 1980, o PT participou com candidatura própria de todas as eleições municipais em Porto Alegre [[1]]. Em 2012, o PT alcançou o pior desempenho em toda essa história eleitoral na cidade. Até mesmo pior que da primeira vez que disputou o pleito, em 1985 - há 27 anos, nos primórdios da construção partidária. O candidato do PT no recente pleito fez apenas 9,64%, o que significam 103.039 votos a menos que na eleição anterior e 194.442 votos a menos que o desempenho histórico médio do PT. [Tabela I]
O PT também teve o pior desempenho para a Câmara de Vereadores de PoA, elegendo a menor bancada desde 1988 [[2]], reduzindo-a de 7 para 5 vereadores. E igualmente viu diminuir 27.418 votos da legenda e 17.338 votos nominais de candidatos a vereador em comparação com a eleição passada. [Tabela II]
 Das oito eleições a prefeito municipal em Porto Alegre nos últimos 24 anos [[3]], é a primeira vez que o PT fica excluído do segundo turno, e a única vez em que o candidato a prefeito do PT faz menos votos que os do Partido para a Câmara de Vereadores [GráficoII]. É uma evidência de que menos eleitores dos vereadores votaram no candidato a prefeito. Por isso, não seria razoável validar a visão de que “ ‘quando se ganha, é mérito do Indivíduo; e quando se perde, a responsabilidade é do Partido”.

 Em 2012, das 133 cidades do Brasil com mais de 200 mil habitantes, o PT disputou eleições com candidatos próprios em 87 delas. Nessas 87 localidades, apenas 8 candidaturas tiveram desempenho inferior a 10%, e a de PoA foi uma delas. Com o percentual de 9,64, somente conseguiu ficar à frente das candidaturas do PT em Campina Grande, PB [1,17%], Vila Velha, ES [2,33%], Barueri, SP [2,36%], Imperatriz, MA [2,83%], Campo Grande, MS [4,87%], Ananindeua, PA [5,24%] e Guarujá, SP [5,35%]. [Tabela III, em anexo]
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Com tais resultados, o PT de Porto Alegre foi o principal desvio do padrão nacional e estadual, mesmo no contexto de um ambiente eleitoral submetido a influências relativamente idênticas em todo o país. Não há um só fenômeno local que pudesse ser relacionado com esta situação.
A conjuntura eleitoral foi influenciada por uma pluralidade de fatores, tanto intrínsecos quanto exteriores à candidatura do PT. Com pesos e ênfases diferenciados, acabaram por determinar o resultado final.
A exploração teledramatúrgica do chamado “mensalão”, por exemplo, ocorreu de norte a sul do Brasil, de modo que as consequências eleitorais dessa questão, assim como de outras questões espinhosas para o PT, teriam sido relativamente similares em todo o país. Até se poderia presumir que em São Paulo o efeito possa ter sido mais drástico, mas, mesmo assim, a candidatura do PT, que iniciou o processo eleitoral com menos de 3%, disputará o segundo turno com reais condições de vitória.
Por outro lado, não existem indicadores de que o PT em PoA tenha deixado de ser preferido por uma considerável parcela da população [entre 22% e 25% do eleitorado]. Isso significa que 1 a cada 4 eleitores preferem o PT, mas somente 1 entre 10 eleitores votaram no candidato do Partido. Isso significa que o candidato do PT foi rejeitado.
O que sim se constata como fenômeno importante no campo da esquerda é o crescimento do PSOL [[4][. Apesar da prática sectária e do “lacerdismo moralista”, parece se beneficiar da convergência da política ao centro, atraindo eleitores petistas [e de outras siglas] com discursos e propostas de esquerda. Esse parece ser um fenômeno nacional, que é replicado no RS.
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Neste cenário, cabe perguntar: que outros fatores explicam a retumbante derrota do PT em Porto Alegre? Seria improdutivo e arrogante menosprezar, neste sentido, os erros cometidos pelo próprio PT no município.
A inclemente derrota do PT em PoA é o ponto culminante de uma trajetória descendente que se iniciou em 2000, quando houve uma primeira fratura interna. Nas eleições de 2008 e 2012 o PT sofreu uma erosão eleitoral na cidade. Assim como nas eleições de 2008, em 2012 o desempenho partidário ficou muito abaixo da média histórica do período 1985/2008 em todos os quesitos. [Tabela 1]
De outra parte, a derrota deste ano condensa vários elementos da crise em que se encontra o PT de PoA. É uma crise que vem de longa data, determinada pela diminuição da capacidade dirigente e militante; pela perda de inserção nos movimentos sociais e comunitários e, não menos importante, pela debilidade organizativa e de direção. Se assiste à perda de organicidade e o comprometimento da capacidade de intervenção e de iniciativa na realidade política e no debate público na cidade.
Também contribui para a diminuição da influência partidária o crescimento da hegemonia dos partidos tradicionais, que se mimetizaram programaticamente. Com oportunismo, distorcem a realidade e proclamam a continuidade das políticas gestadas pelo PT. Aplicam o conhecido truque eleitoral de “manter o que é bom e mudar o que está mal”.
Todos estes fatores pesaram na determinação da derrota, é verdade. Adicionalmente, entretanto, deve-se reconhecer que a lógica partidária de instrumentalização da política com o “repúdio da razão” está na raiz desta crise. Recordemos Barbara Tuchman: “Nas operações governamentais, a impotência da razão é algo muito grave, porque afeta tudo aquilo que se encontra ao alcance — cidadãos, sociedade, civilização. Era problema que preocupava profundamente aos gregos, iniciadores do pensamento ocidental. Eurípedes, em suas últimas obras, concorda em que o mistério do erro moral e da insensatez não pode ser atribuído a causas externas, à peçonha de Ate — como se fosse uma aranha — ou a qualquer intervenção dos deuses. Homens e mulheres têm que aceitar esse ônus como parte da condição humana”.
O PT parece não ter aprendido com os fracassos de eleições anteriores, quando a luta interna por poder e por destruição dos adversários internos – em claro “repúdio da razão” – foi desenvolvida cegamente, acima da realidade e desprezando a perspectiva estratégica. As experiências das prévias partidárias para a escolha de candidaturas sempre foram traumáticas, porque baseadas na confrontação pura e simples entre campos internos, em alianças artificiais, em meras disputas por poder.
O processo para a definição da candidatura do PT em 2012 repetiu os equívocos do passado. Baseou-se no critério de maiorias artificiais, com maquinações e arranjos feitos da noite para o dia e sem bases programáticas. Este método não leva em conta que a sociedade, especialmente os setores simpáticos ao PT, presta muita atenção nas escolhas que o Partido faz. E que, com sabedoria, apresenta a fatura amarga ante escolhas equivocadas.
No “reino das maiorias” não entra a razão e a análise diligente da realidade. Prevalece o hegemonismo apoiado no cálculo para o controle da máquina partidária ou governamental, quando conquistada. Repetindo novamente Barbara Tuchman: “Voltamos a Burke: ‘Não é raro que a magnanimidade em política se torna a verdadeira sabedoria; um grande império e mentalidades tacanhas não se combinam bem’. O problema está em se reconhecer quando a persistência no erro se torna autodestruidora”.
As escolhas em Porto Alegre, que finalmente se demonstraram equivocadas, apresentaram um Partido confuso, sem política, sem programa, sem força de convocação militante e social.
A lógica das correntes e a visão particularista prevaleceram sobre o conjunto partidário. O quadro eleitoral evidenciava que seria uma eleição difícil e, portanto, que exigiria da candidatura do PT muito conhecimento público, densidade eleitoral e uma capacidade de explicar com facilidade de compreensão algo que era complexo: a confrontação de três candidaturas do campo democrático-popular.
Nesta condição, como singularizar a candidatura do PT, como apresentar as diferenças e disputar a consciência do povo? Ao contrário da diferenciação, ficou evidenciada a pasteurização. Com a “semelhança” dos campos pró-Dilma e pró-Tarso, não se soube explorar eficientemente a vinculação preferencial do PT com os governos estadual e nacional. Esse fenômeno explica porque os votos da Manuela migraram para o Fortunati [e não para o Villa], mas não foram para a oposição conservadora aos governos Tarso e Dilma.
Não seria correto atribuir o fracasso à tática eleitoral. A decisão sobre a candidatura própria foi unânime no PT; todas as correntes e lideranças partidárias defenderam esta posição. Candidatura própria não significa, em si mesmo, garantia de vitória. Em toda a história do PT de PoA, o Partido sempre se apresentou com candidatura própria. E neste período o Partido sofreu várias derrotas – todas elas, todavia, eleitorais. A derrota de 2012, contudo, foi uma hecatombe política, uma derrota política humilhante. 
A pregação de que o PT deveria ter abdicado da candidatura própria para ser vice de um dos dois candidatos não tem consistência. Por um lado, porque a candidatura do prefeito eleito articulou o campo conservador e dos setores anti-petistas, inviabilizando uma aliança com o PT. A candidatura do PCdoB, por outro lado, comprovou que não “havia chegado a hora” da novidade sustentada em forte marketing eleitoral.
A aplicação da tática eleitoral - ou seja, a candidatura, a estratégia e a política definidas pela maioria partidária – além de se basear em métodos esgotados, revelou-se inadequada às necessidades de um duro enfrentamento eleitoral. A eleição comprovou que se o PT tivesse uma candidatura mais conhecida e identificada com o legado dos governos do Partido na cidade, os resultados teriam sido totalmente diferentes.
Seria muita ingenuidade crer que qualquer que fosse a candidatura do PT o resultado seria o mesmo. Em 2002, por exemplo, para a definição do candidato o PT que disputaria a Presidência da República, o Partido foi constrangido a realizar uma incompreensível prévia entre Suplicy e Lula. Alguém duvida que, se o candidato não fosse Lula, o resultado teria sido outro?
***
Diante dessa derrota inclemente, o PT não pode, outra vez, encontrar um refúgio confortável no silêncio e na negação do fracasso. Novamente vale se socorrer de Tuchman: “A paralisação mental ou estagnação — manutenção intacta pelos governantes e estrategistas políticos das idéias com que começaram — é terreno fértil para a insensatez. Montezuma se constitui em exemplo fatal e trágico”.
Ou o PT aprende com os erros, ou as derrotas continuarão sendo o destino e a fonte da autodestruição. Como também adverte Barbara, “a política fundada em erros multiplica-se, jamais regride”.






[[1]] Durante a ditadura militar, ficou proibido até o ano de 1985 a realização de eleições nas capitais, áreas de bases militares, de barragens de usinas elétricas e regiões de fronteira, consideradas áreas de segurança nacional presumivelmente passíveis de “ataques terroristas”. Os prefeitos municipais dessas cidades eram então indicados pelos militares normalmente dentre políticos da ARENA – cuja sigla sucedânea, depois de várias mudanças, é o atual PP. Em 1985 foi realizada a primeira eleição direta em Porto Alegre depois da ditadura.
[[2]] A primeira participação do PT em eleições para a Câmara de Vereadores foi em 1982, dois anos após sua fundação. Naquele ano, pelas razões assinaladas na nota anterior, somente se realizavam eleições proporcionais nas áreas de segurança nacional. Em 1982, o PT elegeu um vereador para a Câmara de PoA.
[[3]] Além de 1985, foram realizadas eleições para prefeito municipal de PoA em 1988, 1992, 1996, 2000, 2004, 2008 e 2012. A partir de 1996, as eleições nas capitais e cidades com mais de 200 mil eleitores passaram a ter dois turnos eleitorais nos casos em que o candidato vencedor não atinja 50% + 1 dos votos válidos.
[[4]] O PSOL manteve os dois vereadores eleitos em 2008 e teve o vereador mais votado desta eleição.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

“Mãe de Deus, Virgem, nos livre de Putin!”


Jeferson Miola [*]

Publicado na Agência Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5777



O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar

Um satírico protesto da banda feminista punk Pussy Riot tem provocado o efeito de um terremoto político na Rússia. A banda foi constituída em 2011 depois das eleições parlamentares fraudadas, e como reação ao anúncio da nova candidatura presidencial de Vladimir Putin ao Kremlin para março de 2012. 
Depois do desmoronamento da União Soviética em 1991, a Rússia teve como Presidentes Boris Yeltsin [1991/1999], Vladimir Putin [1999/2008] e Dmitri Medvedev [2008/2012]. Este último, um simples preposto que ocupou a presidência teleguiado pelo próprio Putin, quem de fato comandou o país como Primeiro-Ministro.
Putin, um ex-agente e ex-dirigente da KGB, com desenvoltura conseguiu erigir uma extraordinária estrutura de poder na Rússia. É um dirigente que tem uma presença poderosa e decisiva na condução do Estado russo desde o período de Yeltsin, quando foi Primeiro-Ministro.
Com a última e controvertida re-eleição, marcada por corrupção, abusos e fraudes, ele governará o país até 2018 – seu plano, na verdade, é se re-candidatar ao final do mandato para se impor até 2024. Sua longevidade no poder na Rússia encontra equivalência nas eras do estalinismo soviético e do czarismo imperial, cujos dirigentes e monarcas gozavam de cargos vitalícios.
A Pussy Riot nasce como mostra de rebeldia contra a perpetuação de um esquema de poder cada vez mais repressor, truculento e corrupto. Se insurge contra um regime que aumenta as desigualdades sociais, ataca os direitos civis e descamba para o autoritarismo. O grupo, constituído de mulheres, realiza suas performances somente em locais públicos - praças, parques, prédios, instalações governamentais.
Nas palavras da integrante Serafima, o Pussy Riot surgiu porque “percebemos que esse país precisava de uma banda militante de street punk feminista que pudesse tocar nas ruas e praças de Moscou e mobilizar a energia pública contra os bandidos da junta Putinista, enriquecendo a oposição cultural e política com temas que são importantes para nós: gênero e direitos LGBT, problemas da conformidade masculina e a dominância dos machos em todas as áreas do discurso político”.
Em suas apresentações, balaclavas [máscaras de alpinistas, iguais às usadas pelos zapatistas] encobrem seus rostos para precaver a repressão e, sobretudo, para representar o anonimato, a universalidade e a impessoalidade de uma ideia. Transmitem a mensagem de que um ideal libertário e humanista não pertence a ninguém, e pode ser assumido por qualquer pessoa anônima.
Em fevereiro passado, três intregrantes da banda Pussy Riot subiram ao altar da Catedral do Cristo Salvador da Igreja Ortodoxa Russa em Moscou para recitar um libelo contra o presidente Vladimir Putin.
A performance durou não mais que 40 segundos. Um tempo escasso, interrompido pela ação da polícia e de algumas freiras da Igreja. Mas uma eternidade que vem produzindo efeitos políticos indesejáveis para Putin, causando um desgaste que parece não ter fim e, cada vez menos, fronteiras.
Nos 40 segundos, as três jovens – Nadezhda Tolokonnikova, de 22 anos; Ekaterina Samutsevitch, de 30; e Maria Alejina, de 24 – só tiveram tempo para recitar um pequeno trecho: “Virgem Maria, expulse o Putin; O patriarca Gundy [da Igreja Ortodoxa] acredita no Putin; Melhor acreditar em Deus, seu verme; Lute pelo seu direito, esqueça o rito; Una-se ao nosso protesto, Virgem Maria; Nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”. 
A “oração” inteira contém muita acidez contra o autoritário e policialesco regime de Putin. E porta uma crítica mordaz ao patriarcado e a uma espécie de capitalismo gangsterista que impera na Rússia:
“Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!

Veste negra, ombreiras douradas!
As crianças da paróquia rastejam para fazer reverência
O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar

Lixo de Deus, lixo, lixo! Lixo de Deus, lixo, lixo!
Mãe de Deus, virgem, torne-se feminista, torne-se feminista, torne-se feminista!

A igreja reverencia líderes podres, procissão de limusines pretas
Na escola, vem um pregador: vá à aula, traga dinheiro!
O patriarca acredita em Putin
Melhor seria acreditar em Deus!
O cinturão da virgem sagrada não impede as manifestações das massas
A virgem Maria está conosco nos protestos!

Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”
Veste negra, ombreiras douradas!

As crianças da paróquia rastejam para fazer reverência
O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar

Lixo de Deus, lixo, lixo! Lixo de Deus, lixo, lixo!
Mãe de Deus, virgem, torne-se feminista, torne-se feminista, torne-se feminista!

A igreja reverencia líderes podres, procissão de limusines pretas
Na escola, vem um pregador: vá à aula, traga dinheiro!
O patriarca acredita em Putin
Melhor seria acreditar em Deus!
O cinturão da virgem sagrada não impede as manifestações das massas
A virgem Maria está conosco nos protestos!

Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”

O regime Putin reagiu implacavelmente à manifestação das jovens, mandando-as para a prisão. Sob o seu patrocínio, o manietado Judiciário russo condenou as três jovens a dois anos de prisão numa colônia penal por “vandalismo e incitação ao ódio religioso”. A religiosidade é puro pretexto para calar a dura crítica política e cultural das jovens, que já reverbera nos quatro cantos de uma Rússia cada vez mais “putin-czarista”.
Putin foi mais realista que a própria Igreja Ortodoxa. Calculou que a comoção religiosa lhe renderia simpatia numa sociedade fortemente influenciada pela Igreja Ortodoxa, ampliando a hegemonia ideológica conservadora. Terá sido, provavelmente, seu maior pecado político.
A Igreja Ortodoxa, para evitar repercussões negativas que a repressão poderia gerar – que de fato foram confirmadas -, preferiu oferecer clemência às jovens. Como não se consideravam pecadoras, elas recusaram a caridade e rechaçaram pedir perdão.
Este processo fez espocar manifestações em várias partes do mundo clamando pela libertação das três ativistas. Grupos feministas serram cruzes da Igreja Ortodoxa no interior da Rússia. O campeão mundial de xadrez e opositor de Putin, Gari Kasparov e dezenas de pessoas foram presas protestando no dia do julgamento. Jovens com balaclavas e artistas de rock organizam protestos e manifestações em Moscou e outras cidades russas. O rastilho pró-rebeldia segue por Paris, Bruxelas, Londres, Barcelona, Berlim, Sidney. No Brasil, em Porto Alegre manifestantes picharam “Putin fascista” na fachada do consulado da Rússia e queimaram pneus em frente ao prédio.
Artistas e intelectuais denunciam o absurdo da condenação. Madonna fez um show em São Petersburgo trajando calça e sutiã, o rosto encoberto com balaclava e a inscrição “Pussy Riot” nas costas desnudas. Paul McCartney, Red Hot Chili Peppers, Sting, Yoko Ono, Peter Gabriel e muitas celebridades do rock pedem publicamente a libertação das três jovens. E, num gesto radical, o artista russo Petr Pavlensky costurou a boca em protesto aos ataques do governo à liberdade de expressão e à livre manifestação.
As jovens são convincentes e categóricas quanto ao papel político que cumprem numa Rússia que fundiu as piores tradições totalitárias do estalinismo e do czarismo. O texto que escreveram para a sessão do julgamento, lido por Nadezhda na véspera da condenação delas, dá a dimensão da consciência histórica e política das jovens. Assim discursou ela:
“Katya, Masha e eu podemos estar presas, mas nós não nos consideramos derrotadas. Da mesma forma que os dissidentes não foram derrotados, apesar de terem desaparecido em manicômios e prisões. Eles pronunciaram um veredito sobre o regime. A arte de criar um retrato de uma época não conhece vencedores nem perdedores”. 
Uma análise interessante fez o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Disse ele: “Acho que se deve ver as Pussy Riot dentro da tradição dos grandes artistas russos”. E mais: “O sistema é frágil. Por exemplo: o que pode ser mais ridículo, mais impotente que um poema? Brodsky ou outro poeta, não sei, fez uma boa constatação durante o estalinismo: você podia levar um tiro por causa de um poema. Que grande constatação!”.
A complexa realidade russa torna complicado antever os desdobramentos que o caso terá. É arriscado afirmar que poderá estimular a animação dos movimentos de oposição ao regime de Putin. No mínimo, porém, já provocaram fissuras na fortaleza de seu poder, e conseguem galvanizar importantes movimentos democráticos no país.
Mas elas têm um mérito irrefutável: com seu viés anarquista, o Pussy Riot elabora uma crítica contundente a dois modelos históricos de organização humana e social que comprovaram sua falência absoluta: o burocratismo estalinista e o capitalismo neoliberal que o sucedeu. O movimento das jovens feministas é uma boa síntese crítica a essas duas faces da mesma moeda da exploração, da dominação e da opressão. E é um ataque inconcedível ao patriarcado, esse pilar de dominação, acumulação capitalista e opressão que plasma os dois modelos. 
A geografia daquelas jovens é a Rússia, não um lugar qualquer do planeta. É justamente na Rússia e desde a Rússia que elas emitem sua mensagem. Nos últimos cem anos, nenhum outro país do globo foi submetido tão vivamente a essas duas experiências históricas como a Rússia. E, portanto, somente o povo russo, com sua memória histórica, é capaz de dar o testemunho da absoluta incompatibilidade dessas duas experiências com um ideal de sociedade justa e igualitária. E é na geografia de uma Rússia borbulhante que nascem as Pussy Riot. Com sua irreverência e consciência, evocam a construção de novos valores, nova moral, nova ética, nova sociedade, novo mundo e uma nova humanidade como um imperativo fundamental.
A humanidade já foi confrontada com aqueles dois modelos que se mimetizam na semelhança em relação aos trágicos resultados humanos que produzem. Da experiência hegemônica capitalista que atravessa séculos de transformações se inventaria fome, pobreza, analfabetismo, guerras, imperialismo, colonialismo, invasões, holocausto, desigualdades e exclusões. Da contraparte estalinista que durou 70 anos no século passado, o legado é fome, pobreza, guerras, execuções, perseguições e inumeráveis atrocidades.
Por isso tudo, Pussy Riot faz uma poderosa denúncia da falência histórica tanto do capitalismo em suas distintas versões, como do chamado “socialismo realmente existente” - o estalinismo em todas suas variantes. Mas Pussy Riot pode estar mostrando que aqueles verdadeiros ideais socialistas, democráticos e iluministas de 1917 ainda estão por ser conquistados, em alternativa às duas formas de barbárie já sofridas pela humanidade.

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[*] Foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas no Brasil de 2001 a 2005.