Jeferson Miola [*]
Publicado na Agência Carta Maior - http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5777
“O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar”
Depois do desmoronamento da União Soviética em 1991, a Rússia teve como Presidentes Boris Yeltsin [1991/1999], Vladimir Putin [1999/2008] e Dmitri Medvedev [2008/2012]. Este último, um simples preposto que ocupou a presidência teleguiado pelo próprio Putin, quem de fato comandou o país como Primeiro-Ministro.
Putin, um ex-agente e ex-dirigente da KGB, com desenvoltura conseguiu erigir uma extraordinária estrutura de poder na Rússia. É um dirigente que tem uma presença poderosa e decisiva na condução do Estado russo desde o período de Yeltsin, quando foi Primeiro-Ministro.
Com a última e controvertida re-eleição, marcada por corrupção, abusos e fraudes, ele governará o país até 2018 – seu plano, na verdade, é se re-candidatar ao final do mandato para se impor até 2024. Sua longevidade no poder na Rússia encontra equivalência nas eras do estalinismo soviético e do czarismo imperial, cujos dirigentes e monarcas gozavam de cargos vitalícios.
A Pussy Riot nasce como mostra de rebeldia contra a perpetuação de um esquema de poder cada vez mais repressor, truculento e corrupto. Se insurge contra um regime que aumenta as desigualdades sociais, ataca os direitos civis e descamba para o autoritarismo. O grupo, constituído de mulheres, realiza suas performances somente em locais públicos - praças, parques, prédios, instalações governamentais.
Nas palavras da integrante Serafima, o Pussy Riot surgiu porque “percebemos que esse país precisava de uma banda militante de street punk feminista que pudesse tocar nas ruas e praças de Moscou e mobilizar a energia pública contra os bandidos da junta Putinista, enriquecendo a oposição cultural e política com temas que são importantes para nós: gênero e direitos LGBT, problemas da conformidade masculina e a dominância dos machos em todas as áreas do discurso político”.
Em suas apresentações, balaclavas [máscaras de alpinistas, iguais às usadas pelos zapatistas] encobrem seus rostos para precaver a repressão e, sobretudo, para representar o anonimato, a universalidade e a impessoalidade de uma ideia. Transmitem a mensagem de que um ideal libertário e humanista não pertence a ninguém, e pode ser assumido por qualquer pessoa anônima.
Em fevereiro passado, três intregrantes da banda Pussy Riot subiram ao altar da Catedral do Cristo Salvador da Igreja Ortodoxa Russa em Moscou para recitar um libelo contra o presidente Vladimir Putin.
A performance durou não mais que 40 segundos. Um tempo escasso, interrompido pela ação da polícia e de algumas freiras da Igreja. Mas uma eternidade que vem produzindo efeitos políticos indesejáveis para Putin, causando um desgaste que parece não ter fim e, cada vez menos, fronteiras.
Nos 40 segundos, as três jovens – Nadezhda Tolokonnikova, de 22 anos; Ekaterina Samutsevitch, de 30; e Maria Alejina, de 24 – só tiveram tempo para recitar um pequeno trecho: “Virgem Maria, expulse o Putin; O patriarca Gundy [da Igreja Ortodoxa] acredita no Putin; Melhor acreditar em Deus, seu verme; Lute pelo seu direito, esqueça o rito; Una-se ao nosso protesto, Virgem Maria; Nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”.
A “oração” inteira contém muita acidez contra o autoritário e policialesco regime de Putin. E porta uma crítica mordaz ao patriarcado e a uma espécie de capitalismo gangsterista que impera na Rússia:
“Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!
Veste negra, ombreiras douradas!
As crianças da paróquia rastejam para fazer reverência
O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar
Lixo de Deus, lixo, lixo! Lixo de Deus, lixo, lixo!
Mãe de Deus, virgem, torne-se feminista, torne-se feminista, torne-se feminista!
A igreja reverencia líderes podres, procissão de limusines pretas
Na escola, vem um pregador: vá à aula, traga dinheiro!
O patriarca acredita em Putin
Melhor seria acreditar em Deus!
O cinturão da virgem sagrada não impede as manifestações das massas
A virgem Maria está conosco nos protestos!
Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”
Veste negra, ombreiras douradas!
As crianças da paróquia rastejam para fazer reverência
O fantasma da liberdade está no céu
Os homossexuais se vão para a Sibéria
O líder da KGB é sua mais alta Santidade
Os manifestantes terminam na prisão
Para não ofender os santos
As mulheres devem parir e amar
Lixo de Deus, lixo, lixo! Lixo de Deus, lixo, lixo!
Mãe de Deus, virgem, torne-se feminista, torne-se feminista, torne-se feminista!
A igreja reverencia líderes podres, procissão de limusines pretas
Na escola, vem um pregador: vá à aula, traga dinheiro!
O patriarca acredita em Putin
Melhor seria acreditar em Deus!
O cinturão da virgem sagrada não impede as manifestações das massas
A virgem Maria está conosco nos protestos!
Mãe de Deus, virgem, nos livre de Putin! Nos livre de Putin! Nos livre de Putin!”
O regime Putin reagiu implacavelmente à manifestação das jovens, mandando-as para a prisão. Sob o seu patrocínio, o manietado Judiciário russo condenou as três jovens a dois anos de prisão numa colônia penal por “vandalismo e incitação ao ódio religioso”. A religiosidade é puro pretexto para calar a dura crítica política e cultural das jovens, que já reverbera nos quatro cantos de uma Rússia cada vez mais “putin-czarista”.
Putin foi mais realista que a própria Igreja Ortodoxa. Calculou que a comoção religiosa lhe renderia simpatia numa sociedade fortemente influenciada pela Igreja Ortodoxa, ampliando a hegemonia ideológica conservadora. Terá sido, provavelmente, seu maior pecado político.
A Igreja Ortodoxa, para evitar repercussões negativas que a repressão poderia gerar – que de fato foram confirmadas -, preferiu oferecer clemência às jovens. Como não se consideravam pecadoras, elas recusaram a caridade e rechaçaram pedir perdão.
Este processo fez espocar manifestações em várias partes do mundo clamando pela libertação das três ativistas. Grupos feministas serram cruzes da Igreja Ortodoxa no interior da Rússia. O campeão mundial de xadrez e opositor de Putin, Gari Kasparov e dezenas de pessoas foram presas protestando no dia do julgamento. Jovens com balaclavas e artistas de rock organizam protestos e manifestações em Moscou e outras cidades russas. O rastilho pró-rebeldia segue por Paris, Bruxelas, Londres, Barcelona, Berlim, Sidney. No Brasil, em Porto Alegre manifestantes picharam “Putin fascista” na fachada do consulado da Rússia e queimaram pneus em frente ao prédio.
Artistas e intelectuais denunciam o absurdo da condenação. Madonna fez um show em São Petersburgo trajando calça e sutiã, o rosto encoberto com balaclava e a inscrição “Pussy Riot” nas costas desnudas. Paul McCartney, Red Hot Chili Peppers, Sting, Yoko Ono, Peter Gabriel e muitas celebridades do rock pedem publicamente a libertação das três jovens. E, num gesto radical, o artista russo Petr Pavlensky costurou a boca em protesto aos ataques do governo à liberdade de expressão e à livre manifestação.
As jovens são convincentes e categóricas quanto ao papel político que cumprem numa Rússia que fundiu as piores tradições totalitárias do estalinismo e do czarismo. O texto que escreveram para a sessão do julgamento, lido por Nadezhda na véspera da condenação delas, dá a dimensão da consciência histórica e política das jovens. Assim discursou ela:
“Katya, Masha e eu podemos estar presas, mas nós não nos consideramos derrotadas. Da mesma forma que os dissidentes não foram derrotados, apesar de terem desaparecido em manicômios e prisões. Eles pronunciaram um veredito sobre o regime. A arte de criar um retrato de uma época não conhece vencedores nem perdedores”.
Uma análise interessante fez o filósofo esloveno Slavoj Zizek. Disse ele: “Acho que se deve ver as Pussy Riot dentro da tradição dos grandes artistas russos”. E mais: “O sistema é frágil. Por exemplo: o que pode ser mais ridículo, mais impotente que um poema? Brodsky ou outro poeta, não sei, fez uma boa constatação durante o estalinismo: você podia levar um tiro por causa de um poema. Que grande constatação!”.
A complexa realidade russa torna complicado antever os desdobramentos que o caso terá. É arriscado afirmar que poderá estimular a animação dos movimentos de oposição ao regime de Putin. No mínimo, porém, já provocaram fissuras na fortaleza de seu poder, e conseguem galvanizar importantes movimentos democráticos no país.
Mas elas têm um mérito irrefutável: com seu viés anarquista, o Pussy Riot elabora uma crítica contundente a dois modelos históricos de organização humana e social que comprovaram sua falência absoluta: o burocratismo estalinista e o capitalismo neoliberal que o sucedeu. O movimento das jovens feministas é uma boa síntese crítica a essas duas faces da mesma moeda da exploração, da dominação e da opressão. E é um ataque inconcedível ao patriarcado, esse pilar de dominação, acumulação capitalista e opressão que plasma os dois modelos.
A geografia daquelas jovens é a Rússia, não um lugar qualquer do planeta. É justamente na Rússia e desde a Rússia que elas emitem sua mensagem. Nos últimos cem anos, nenhum outro país do globo foi submetido tão vivamente a essas duas experiências históricas como a Rússia. E, portanto, somente o povo russo, com sua memória histórica, é capaz de dar o testemunho da absoluta incompatibilidade dessas duas experiências com um ideal de sociedade justa e igualitária. E é na geografia de uma Rússia borbulhante que nascem as Pussy Riot. Com sua irreverência e consciência, evocam a construção de novos valores, nova moral, nova ética, nova sociedade, novo mundo e uma nova humanidade como um imperativo fundamental.
A humanidade já foi confrontada com aqueles dois modelos que se mimetizam na semelhança em relação aos trágicos resultados humanos que produzem. Da experiência hegemônica capitalista que atravessa séculos de transformações se inventaria fome, pobreza, analfabetismo, guerras, imperialismo, colonialismo, invasões, holocausto, desigualdades e exclusões. Da contraparte estalinista que durou 70 anos no século passado, o legado é fome, pobreza, guerras, execuções, perseguições e inumeráveis atrocidades.
Por isso tudo, Pussy Riot faz uma poderosa denúncia da falência histórica tanto do capitalismo em suas distintas versões, como do chamado “socialismo realmente existente” - o estalinismo em todas suas variantes. Mas Pussy Riot pode estar mostrando que aqueles verdadeiros ideais socialistas, democráticos e iluministas de 1917 ainda estão por ser conquistados, em alternativa às duas formas de barbárie já sofridas pela humanidade.
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[*] Foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas no Brasil de 2001 a 2005.
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