sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Julgar torturadores e reescrever a verdadeira história

Jeferson Miola, integrante do IDEA – Instituto de debates, estudos e alternativas de Porto Alegre - jmiola@uol.com.br

A historiografia de um povo e de um país não pode obscurecer os elementos factuais que dela fizeram parte, mesmo que causem vergonha e exponham as mais profundas dores, feridas e traumas.

Para o povo alemão, por exemplo, o compromisso com o completo esclarecimento das atrocidades nazistas cometidas contra a humanidade há mais de 60 anos, é uma questão de Estado e de educação cívica e ética. Cada descoberta e cada nova verdade sobre as práticas nazistas ampliam a consciência alemã - e internacional - sobre a liberdade, os direitos e a tolerância e, principalmente, ajudam a catalogar a barbárie nazista como parte do inventário de um passado trágico que não mais se repetirá.

Na América do Sul, nos anos 1980-1990, as transições liberais-conservadoras das ditaduras militares para regimes democráticos contemplaram a concessão de anistias para os agentes de Estado que praticaram ações terroristas contra ativistas de esquerda e contra a população em geral. Essas democracias já nasceram, por isso, em dívida com a verdade, com a justiça e com a história – impuseram ilegitimamente um ponto final sobre o passado cruel e sangrento.

Com processos e tempos distintos o Chile, a Argentina e o Uruguay reabriram esse capítulo tenebroso das respectivas ditaduras militares e dos bárbaros crimes cometidos pelos agentes de Estado contra os militantes políticos. De acordo com a realidade de cada país, os torturadores – ex-ditadores, policiais, colaboradores civis e militares - estão sendo legalmente julgados e condenados pelos atos praticados no passado.

No Brasil, uma inédita ação cível impetrada pela família Maria Amélia e César Teles junto com Maria Criméia – todos ex-presos políticos – contra o torturador e hoje coronel aposentado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, quebra o silêncio imposto e pode representar um novo paradigma para o julgamento dos crimes da repressão no Brasil.

A ação judicial tem caráter declaratório e busca o reconhecimento dos danos sofridos à integridade física, moral e psicológica, e também quer reconhecer Brilhante Ustra como torturador. Adotando o codinome de Doutor Tibiriçá, Brilhante Ustra foi um dos piores algozes do regime e comandou o DOI-CODI em São Paulo durante o mais duro período do governo Médici.

A reabertura da discussão sobre os crimes da ditadura é componente essencial do reencontro do povo brasileiro com seu passado e com a projeção de um destino livre de arbítrios e violências contra a liberdade e a justiça.

Acusar a esquerda de vingativa e revanchista por defender a condenação legal dos crimes e dos criminosos, é tão infame quanto apagar a memória sobre a barbárie cometida. Continuar impondo ao Brasil o silêncio sobre os acontecimentos do passado equivale a amputar o direito do povo brasileiro à história e à verdade.

As gerações presentes não têm o direito de apagar da memória a crueldade praticada contra gerações passadas, deixando impunes aqueles que cometeram tantas atrocidades. Filmes honestos como Crônicas de uma fuga [2006], Kamkatcha [2003] e Zuzu Angel [2005] ilustram dolorosamente a crueldade dos torturadores, e não deixam nossa consciência em paz com um silêncio que também pode ser criminoso.

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