Jeferson Miola [[*]]
Publicado na Agência Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6038
Publicado na Agência Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=6038
Leonardo
Padura, escritor cubano, é autor da magnífica obra “El hombre que amaba a los perros”. Na 1ª edição desse livro, no agradecimento
à esposa Lucía, que “me suportou nestes
cinco anos de tristezas, alegrias, dúvidas e medos, nos quais dediquei manhãs,
tardes, noites e madrugadas a gestar, a dar forma e a arrancar de dentro de mim
esta história exemplar de amor, de loucura e de morte”, Padura revela a confiança
em que o livro “aporte algo sobre como e
por quê se perverteu a utopia ...”.
O
autor de “El hombre que amaba a los
perros” é transparente quanto à motivação intelectual para a feitura do
livro: “utilizar a história do
assassinato de Trótsky para reflexionar sobre a perversão da grande utopia do
século 20”, quer dizer, a degeneração totalitária e a degradação ética e
moral da Revolução Russa de 1917 que se sucedeu com o regime estalinista, e que
vinculou indelevelmente [e nefastamente] o ideal socialista à experiência do chamado
“socialismo realmente existente”.
Com
uma técnica narrativa magistral, o livro biografa em simultâneo a vida do
revolucionário bolchevique Leon Trótsky e do seu verdugo, o agente soviético
Ramón Mercader Ríos - catalão de nacionalidade e dono de muitos codinomes:
Jacques Monard, Frank Jacson, Jaime López, Ramón Ivanovitch López, Ramón
Pavlovich ...
Ramón
Mercader foi recrutado em 1936 pelo serviço secreto soviético no front da Serra
de Guadarrama na Guerra Civil Espanhola, e conduzido para Moscou, onde receberia
um especial treinamento. Nos anos de preparação para a macabra operação,
Mercader se metamorfoseou em um ser assustadoramente sinistro, dono de muitas personalidades
e ardis, e adestrado para executar a “nobre
tarefa em nome do proletariado mundial”. O planejamento meticuloso, a
arquitetura e o timing para o
assassinato de Trótsky obedeceram a ordens diretas e ao monitoramento de Joseph
Stálin.
O
assassinato foi finalmente consumado em agosto de 1940. Ramón Mercader,
infiltrado no círculo de relações pessoais de Trótsky a partir do envolvimento
afetivo calculadamente estabelecido com a militante trotskista Sylvia Agelof em
Paris alguns meses antes do assassinato, se tornou confiado perante a segurança
pessoal de Trótsky, e passou a gozar de relativa facilidade de ingresso na casa
de Coyoacán.
Na
tarde de 20 de agosto, pretextando levar para a revisão de Trótsky um artigo sobre
dissidências trotskistas nos EUA que foi deliberadamente mal escrito, Ramón
provocou o encontro fatal com o velho revolucionário. Enquanto Trótsky lia o
artigo sentado na escrivaninha do seu escritório, Ramón o golpeou mortalmente por
trás, atingindo sua cabeça com uma picareta de alpinismo.
Ramón
foi surpreendido pela incrível reação de Trótsky. Mesmo atingido mortalmente, Trótsky
soltou um grito retumbante de raiva e dor, e mordeu a mão com que Ramón segurava
a picareta, para prevenir um novo golpe. Quando seus guarda-costas adentraram
no escritório, Trótsky ordenou aqueles que devem ter sido seus dois últimos
pedidos: que impedissem seu neto de assistir a cena, e que mantivessem Ramón
vivo, porque assim poderiam conhecer a verdade sobre a trama arquitetada doentiamente
por Stálin.
Ironicamente,
Ramón Mercader sobreviveu graças à decisão da sua própria vítima, de deixá-lo
vivo. Não sem o castigo, todavia, de ouvir todos os dias, até os últimos dias
da sua vida, aquele perturbador uivo estridente, e de ver sempre aquela
cicatriz na mão direita como uma lava incandescente a lembrar o horror
estalinista. Nos 20 anos de prisão no México depois de condenado por homicídio,
manteve-se leal e devoto à “causa”: ocultou sua verdadeira identidade e
protegeu os autores intelectuais e mandantes do crime. Em 1960, uma vez
libertado e expulso do México, se radica na URSS – o único país do mundo que
lhe concedeu abrigo.
Ao
longo dos últimos 70 anos, foram produzidas importantes obras biográficas sobre
Leon Trótsky. Valem ser destacadas a trilogia de Isaac Deutscher [O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O
Profeta Banido] e vários escritos de Pierre Broué.
Mas
a isenção teórica e ideológica do autor de “El
hombre que amaba a los perros” distingue esse livro pela fidelidade
histórica de raro valor – diferentemente dos outros dois excelentes autores
citados, Padura é um intelectual não filiado à tradição trotskista, e que por
décadas não pôde acessar a literatura trotskista em sua natal Cuba.
Esse
distanciamento de Padura em relação a Trótsky e ao trotskismo assegura à
narrativa uma mirada crítica e não romantizada da trajetória do líder da
Revolução Russa e do Exército Vermelho. “El
hombre que amaba a los perros” descreve vários erros cometidos por Trótsky
nos anos iniciais da Revolução Russa, se detendo especialmente no exame do
papel desempenhado pelo Exército Vermelho no massacre de milhares de
marinheiros durante a Revolta de Kronstadt, em março de 1921.
“El hombre que amaba a los perros” é um livro
primoroso e atrevido, que interpela a história em busca da verdade sobre um dos
fatos mais marcantes do século 20 e que envolveu um dos maiores personagens do
socialismo de toda a história. É, ainda, um eficiente libelo contra a deturpação
ideológica que, desonestamente, busca confundir a experiência trágica do terror
estalinista com os ideais de uma democracia socialista ainda não vivenciada
verdadeiramente pela humanidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário