Jeferson
Miola [*]
Publicado no site da Agência Carta Maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=5937.
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Se o “espírito” era
“moderno”, o era enquanto estava decidido que a realidade se emancipasse da
“mão morta” de sua própria história ... e isso só poderia ser logrado
derretendo os sólidos [quer dizer, dissolvendo tudo aquilo que persiste no
tempo e que é indiferente à sua passagem e imune ao seu escoamento]. Essa
intenção requeria, por sua vez, a “profanação do sagrado”: a desautorização e a
negação do passado e, primordialmente, da “tradição” - isto é, o sedimento e o
resíduo do passado no presente. Portanto, requeria, da mesma forma, a
destruição da armadura protetora forjada pelas convicções e lealdades que
permitiam aos sólidos resistirem à “liquefação”.
... ...
... ...
O que foi quebrado já
não pode ser colado. Abandonem toda a esperança de unidade - tanto futura como
passada - vocês, os que ingressam ao mundo da modernidade fluida.
Zygmunt Bauman, em “Modernidade
Líquida”.
1.
O julgamento do STF marca o fim de uma
etapa da vida do PT no ano em que cumpre 33 anos de existência - apesar de não
ter sido julgada a “instituição PT”.
A condenação dos Indivíduos que, no exercício
de funções dirigentes no PT cometeram
equívocos indeléveis, foi capsiosamente convertida em condenação do PT. Os
efeitos políticos do julgamento sobre o patrimônio ético, programático e
simbólico do PT foram, portanto, profundos. E cobrarão um elevado tributo por
um prolongado período de tempo.
2.
É sabido que a direita não desperdiçou a
oportunidade de narrá-lo como o “mais
importante julgamento nos 121 anos da história do STF na República”. Soube
incrustá-lo com perspicácia no calendário das eleições municipais de 2012 – ainda
que tenham sido frustrados nesse intento, como evidencia o desempenho eleitoral
do PT, especialmente na cidade de São Paulo.
O padrão de unidade orgânica da direita
na condução desse processo foi impecável. Por um lado, compactou o campo
jurídico reacionário: o STF e o Ministério Público foram, nessa perspectiva,
eficientes “células partidárias” no Poder Judiciário. O Supremo, aquela
instância “Inatacável, Inalcançável e Divina”, conferiu uma falsa materialidade
jurídica para a torpeza política.
Em outra frente, os segmentos da mídia
hegemônica e monopólica, naturalmente concorrenciais entre si, desta feita se
uniram na editorialização do processo e na narrativa subliminar contra o Partido.
A prioridade foi implicar centralmente o
PT, mais além dos Indivíduos efetivamente implicados. Os Ministros do STF e a
mídia foram os principais atores políticos e juízes do processo. Fizeram militância obssessiva pela condenação
do PT como instituição. O ativismo frenético de determinados ministros do
Supremo, do Procurador-Geral da República e da mídia hegemônica substitiu a
necessidade de maior proeminência dos partidos da oposição conservadora, que
desempenharam um papel coadjuvante no combate ao PT e ao governo. Desse modo,
simularam ser um julgamento “técnico”, livre de politização.
***
Nas circunstâncias análogas da história
do Brasil em que houve uma confluência tão harmoniosa dos interesses das
distintas estruturas reacionárias de Poder – no Judiciário, no Parlamento e na
mídia hegemônica - as resultantes foram
instabilidade e fratura institucional: histerismo contra Getúlio Vargas, auto-golpe
de Jânio Quadros, golpe militar de 1964, etc.
A conspiração no marco da
institucionalidade, com aparência de normalidade democrática, é a modalidade
contemporânea do que alguns autores chamam de “neogolpismo” [[1]]
levado a cabo contra governos progressistas. Os “golpes institucionais” em
Honduras e Paraguai, bem como as tentativas renitentes de desestabilização na
Argentina, Bolívia e Equador são evidências deste fenômeno na região.
3.
A aplicação da “inovadora” – ou
jurisprudencial, no vocabulário jurídico – tese adotada pelo Supremo para
condenar os réus, foi considerada equivocada por um dos principais autores da
teoria do “domínio do fato”, o professor
e jurista alemão Claus Roxin [[2]].
Outros autores consideraram-no um “julgamento de exceção” [[3]],
pois atropelou os princípios do devido processo legal e subverteu a ordem
jurídica democrática moderna advinda com as revoluções oitocentistas.
É certo, por isso, que não se tratou de um
julgamento isento, imparcial e atento à técnica jurídica. Tivesse sido, por
outro lado, um julgamento realizado à margem das Leis e da Constituição, não se
estaria ante um processo judicial, e sim ante um regime totalitário. Não é esse,
entretanto, o presente caso, ainda que seja nítido o intento conspirativo intínseco
a ele.
4.
Por mais que se confirmem as inúmeras aberrações
do julgamento, a realidade é que ele somente ocorreu e foi semioticamente
espetacularizado porque existiu causa material concreta a motivar sua
instalação: alguns ex-dirigentes do PT aplicaram os mesmos dispositivos do
sistema ilegal de financiamento de campanhas adotado pelos partidos
tradicionais. Considerando tais práticas, não há garantias de que os réus não
seriam condenados mesmo num julgamento técnico e isento.
A partir desse fato gerador, porém, uma
série de extrapolações foram feitas, e a mais estapafúrdia delas é o alegado “pagamento
de mesada” regular a parlamentares durante o governo Lula – inclusive a parlamentares
aliados e a integrantes do próprio PT.
5.
Determinados setores partidários, em
especial os que pertencem à tendência política interna dos implicados, involuntariamente
acabam reforçando a absurda idéia de que o PT foi condenado, e não
exclusivamente os Indivíduos. Quando reivindicam solidariedade institucional do
PT [cotização para pagamento de multas, por exemplo] como se o PT tivesse sido
condenado, nada mais fazem que referendar e reforçar, no debate público, a
imputação criminosa da direita contra o PT.
O conjunto do tecido partidário, mesmo sem
nenhum conhecimento sobre as práticas “heterodoxas” empregadas, ainda assim foi
respeitoso e solidário com os ex-dirigentes no curso desse julgamento thermidoriano. E continua sendo, pois
não reivindica a aplicação das normas estatutárias relativas a casos como o
presente.
6.
Concluído o julgamento no Supremo, porém,
o PT não pode seguir refém do agendamento imposto pela mídia e reverberado nos
parlamentos, no debate público e na vida cotidiana da sociedade. O julgamento
do chamado “mensalão” está praticamente concluído – restam apenas prazos para recursos
e para os trâmites finais. Mas os graves efeitos ocasionados ao PT são, desde
logo, definitivos e irreversíveis, e sobre eles se deve intervir.
É momento, pois, de se refletir com uma
sincera e desarmada autocrítica a respeito dos acontecimentos, de se entender
as causas profundas da adoção de práticas degeneradas, e de se projetar
políticas que recuperem a identidade original do PT no imaginário popular.
A realidade presente, por mais dolorosa
que possa ser, oferece oportunidades importantes para se entender os
acontecimentos que acometeram o Partido.
7.
No plano interno, da organização
partidária, as sucessivas mudanças empreendidas nos últimos anos com o espírito
de “flexibilizar” o funcionamento partidário – do financiamento à filiação – se
converteram, potencialmente, em vetores para o abalo moral e ético.
A mediação é um componente vital da
atividade política. Entretanto, em muitas vezes uma visão excessivamente
pragmática prepondera sobre opções políticas que podem ser mais trabalhosas no
curto prazo, mas que asseguram uma coerência estratégica.
Paradoxalmente, os petistas que foram julgados
pereceram devido às próprias visões e critérios de construção partidária que
definiram para o PT na condição de histórica maioria interna. Os acontecimentos
demonstraram, finalmente, que a secundarização dos valores originais do PT é fonte
de importantes problemas – mas jamais solução.
8.
Abrandando a visão socialista para
tornar-se “palatável” e “moderno”, o PT abdicou da radicalidade política e se afeiçoou
ao jogo político conservador e tradicional. Um dos reflexos disso foi a “parlamentarização
da política”, ou seja, o estabelecimento da arena parlamentar como âmbito principalíssimo
da disputa hegemônica e de garantia de governabilidade. A governabilidade
congressual é considerada, nesse sentido, uma fatalidade incontornável.
Alianças exóticas e sem identidade
programática substituem a coerência e a nitidez ideológica, deseducam o povo
desencantando-o em relação à política, que acaba por criminalizá-la. A relativa
secundarização dos espaços públicos de deliberação e de controle social por
vezes é compensada pelas lógicas parlamentares de sustentação governamental.
No governo central, o PT tem explorado
com timidez uma potente capacidade de mobilização da sua base social para
defender e sustentar as mudanças e transformações e para contrarrestar a
pressão por vezes chantagista do Parlamento. Priorizando as negociações
inter-partidárias e as relações parlamentares, sempre se fica vulnerável às
práticas do toma-lá-dá-cá.
9.
O adiamento na implementação de determinadas
reformas durante os 10 anos no governo nacional, cobra um importante preço
político. São reformas que, se não forem disputadas para que ganhem
efetividade, comprometerão a construção de um estatuto democrático e plural
para o país.
O Brasil contemporâneo reclama a realização
das reformas tributária, política e do Judiciário. Além disso, necessita de
mudanças que assegurem a democratização do acesso à produção e à difusão da
informação e da comunicação pública.
De todas as mudanças que são urgentes, a
reforma política e a democratização dos meios de comunicação são as de primeiro
nível de prioridade.
10.
Sem reforma política com financiamento
público de campanhas, com listas partidárias e com o fim das coligações
proporcionais, a porta da corrupção eleitoral seguirá escancarada. Sem uma
verdadeira reforma política os governos continuarão dependentes de alianças
esdrúxulas, sem coerência programática e estruturadas na base do loteamento do
aparelho de Estado.
O atual sistema político e eleitoral
favorece o poder econômico e distorce a representação pública. É um campo
fecundo para a mercantilização da política e para a deturpação da democracia. E
justamente esse sistema político e eleitoral está na raiz do chamado
“mensalão”.
11.
De outra parte, a preservação
de um padrão permissivo do Estado em relação aos oligopólios midiáticos é fator
que interdita a pluralidade e a democracia cultural. Os meios de comunicação no
país pertencem a não mais que a um punhado de famílias e pastores de igreja. Essa
realidade é um escândalo para um país laico, de 8,5 milhões de quilômetros
quadrados, 200 milhões de habitantes e portador de uma generosa pluralidade
cultural.
Em alguns países europeus, o problema da regulação
da propriedade dos meios de comunicação há muito foi superado. Lá, além de
restrições muito efetivas ao exercício de monopólios e ao domínio de múltiplas
mídias pelos mesmos conglomerados, o Estado é proprietário de emissoras
públicas de rádio e televisão, para garantir a pluralidade de expressão das
sociedades nacionais.
A democratização e a
regulação da propriedade dos meios de comunicação [e não do conteúdo publicado]
segundo o interesse público [de toda a sociedade, e não somente dos donos dos
veículos] é um componente vital para a democracia, para a liberdade e para a
pluralidade. Os monopólios verificados no Brasil não subsistiriam nas mais
avançadas democracias do mundo.
12.
No curso de 2013, nos 33 anos de vida do
PT, se realizará o PED [Processo de Eleições Diretas], e se desenrolarão os
debates partidários com vistas ao 5º Congresso Nacional do Partido agendado
para fevereiro de 2014.
Além dessas complexas lógicas internas, se
deve prever para 2013 o aprofundamento dos ferozes enfrentamentos políticos e
ideológicos que têm como horizonte a sucessão presidencial em 2014. Será um
ano, pois, de continuidade e aprofundamento da “guerra anti-popular prolongada” iniciada em 2003 depois da assunção
de Lula no governo central do Brasil.
O PT deve se planejar estrategicamente
para fazer frente à natural exposição pública que terá ao longo desse ano. Deverá
aproveitá-la para politizar o diálogo com o conjunto da sociedade, em especial
com os setores que se referenciam nas políticas e práticas partidárias, assim
como com os segmentos que acompanham com atenção e interesse os caminhos
tomados pelo Partido.
13.
O êxito na construção do PT nesses 33
anos, que o guindou precocemente à Presidência da República, está em grande
medida associado à capacidade de elaboração e persuação programática, de
encantamento com o ideário de “um outro
mundo possível” e de implementação de revolucionárias formas de fazer
política e de gerir a coisa pública com ética e participação popular.
Esse patrimônio do PT - de confiança e
esperança - é muito maior que o maior dos erros que eventualmente alguns militantes
possam cometer individualmente. E é a base a partir da qual se pode lançar
iniciativas que visem recuperar a imagem do Partido no imaginário social. Para
isso, é necessário que se faça uma humilde autocrítica acerca dos
acontecimentos que originaram o julgamento no STF, admitindo os equívocos
cometidos por alguns ex-dirigentes partidários.
Nenhum evento desfavorável será capaz de
subtrair a autoridade do PT para liderar uma disputa teórica e cultural na
sociedade em torno de valores republicanos, democráticos e éticos. Somente com
uma postura autocrítica o PT poderá assumir uma conduta ofensiva no debate
público acerca da necessidade de mudanças no atual sistema político e eleitoral
que impede a dignidade e a moralidade na política.
14.
Ainda não se produziu um balanço exaustivo
a respeito dos 10 anos dos governos do PT no Brasil. Mas, mesmo contabilizadas
as contradições e insuficiências dos governos Lula e Dilma, visíveis no padrão
de acumulação capitalista, a realidade é que os governos petistas realizam o
empreendimento mais generoso e civilizatório da história do país.
O ciclo do PT no governo, entretanto,
não será eterno, ainda que que possa ser longevo. Por isso, é fundamental se
refletir a respeito da institucionalização de mecanismos e práticas
consagradores de uma nova cultura de gestão do Estado, para garantir avanços
obtidos e para preservar as conquistas democrático-populares.
Na ausência de salvaguardas
institucionais para a preservação desse patrimônio, num eventual revés
eleitoral se poderá sentir uma desacumulação na capacidade de luta para a
retomada do poder e para a acumulação de forças de um projeto transformador.
A estrutura de dominação, lapidada em
500 anos de opressão, exclusão e concentração da riqueza, provavelmente
resistiria a décadas de governos petistas. A situação na Europa é exemplar: o Estado
de bem-estar social, com seus 60 anos de edificação, tem sido a principal
vítima na crise. Os poderosos – financistas à frente – preservam seus
interesses às custas da destruição dos direitos de cidadania da maioria do
povo.
O próximo período, que será de ferrenhas
disputas com a oposição conservadora, permitirá ao PT difundir as conquistas
dos 10 anos na condução do país. Será ocasião para conectar os avanços havidos com
a necessidade de se reformar o Estado para incrustrar nele os compromissos com
os direitos, com a democracia participativa, com a igualdade, com os ideais
republicanos e com a justiça social.
Mereceria ser avaliado o cenário de
convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte específica e exclusiva,
desde que constituída numa correlação de forças favoráveis aos interesses
democrático-populares, desde que possa refletir a conjuntura de avanço do campo
progressista e de esquerda.
***
O PT não pode se converter num tipo
institucional do gênero Forrest Gump e
fazer de contas que nada passou ou então que o tempo se encarregará de fazer as
coisas passarem.
Na vida real - no dia-a-dia das escolas,
das repartições públicas, das empresas, dos lares -, as dificuldades
enfrentadas pelo PT têm uma audiência atenta. Por razões óbvias: o PT lidera o
governo nacional, e é a mais auspiciosa invenção da esquerda brasileira e a
mais renovada tradição democrática e socialista do Brasil.
Desprezar essa realidade não é o melhor
critério político e, menos ainda, expressão de sensatez. O PT tem condições de
assumir a iniciativa política na conjuntura, em especial buscando politizar o
debate sobre questões essenciais para o avanço republicano e democrático. De
outra maneira, será agendado pela oposição conservadora e seus braços
institucionais no judiciário e na mídia hegemônica, ficando numa posição
defensiva e respondendo no terreno deles.
A reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade
é o principal antídoto contra a liquefação política no contexto da “modernidade líquida”. E, também,
garantia de que o Partido não se transforme num simples e mais um partido da
ordem – risco alertado por Florestan Fernandes na eventualidade do PT abdicar
dos valores que constituem e que justificam sua origem.
[*] Foi
Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas no Brasil
de 2001 a 2005.
[[1]] Ver artigo “Estados Unidos, Venezuela e Paraguai”, de autoria de Samuel
Pinheiro Guimarães Neto, publicado na Agência Carta Maior, http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20570 e entrevista ao Jornal Folha de São
Paulo em 29/06/2012 do mesmo autor: “Diplomata
vê onda golpista na América do Sul”, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/51567-diplomata-ve-onda-neogolpista-na-america-do-sul.shtml
[[2]] Entrevista do jurista Claus Roxin à
Folha de São Paulo, em 11/11/2012 – “Participação
no comando de esquema tem de ser provada” - http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/77459-participacao-no-comando-de-esquema-tem-de-ser-provada.shtml.
[[3]] Entrevista de Wanderley Guilherme dos
Santos ao Valor Econônico de 21/09/2012 – “Mensalão
será um julgamento de exceção” - http://www.valor.com.br/mensalao/2838584/mensalao-sera-um-julgamento-de-excecao-diz-wanderley-guilherme.
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