Derrota inclemente
Jeferson
Miola
“O pensamento racional claramente aconselhava os troianos a suspeitarem
de um ardil quando acordaram verificando que todo o exército grego
desaparecera, deixando apenas estranho e monstruoso prodígio à frente das muralhas
da cidade. O procedimento racional deveria ter sido, ao menos, examinar o
cavalo em busca de inimigos, tal como foram veementemente aconselhados por
Cápis o Velho, Laocoonte e Cassandra. Essa alternativa esteve presente e bem
viável, mas foi posta de lado em favor da autodestruição.”
Barbara Tuchman, em “A marcha da insensatez”.
Barbara
Tuchman, em seu memorável livro “A marcha
da insensatez”, desvenda a tendência paradoxal que possuem autoridades,
políticos e instituições de produzirem políticas contraproducentes que, ao fim,
contrariam seus próprios interesses.
Como parte do
exaustivo apanhado histórico que realiza, a autora estadunidense examina desde a
Guerra de Tróia, passando pelos papados da Igreja Católica na Idade Média, até os
anos 1970, em que analisa as armadilhas que os EUA produziram contra si mesmo com
a estratégia de guerrar no Vietnã.
Em suas
brilhantes análises, a autora demonstra como decisões desatinadas e carentes de
racionalidade em algumas realidades produziram destruição e tragédias. Diz ela,
com uma crítica lancinante: “sendo óbvio
que a perseguição de desvantagem após desvantagem é algo irracional,
concluímos, em conseqüência, que o repúdio da razão é a primeira
característica da insensatez. As sucessivas medidas adotadas com respeito tanto
às colônias americanas como quanto ao Vietnã eram tão nitidamente baseadas em
atitudes preconceituosas e tão perfeitamente contrárias ao senso comum, às
inferências racionais e aos conselhos judiciosos, que, como insensatez, falam
por si mesmas”.
As escolhas do
PT para as eleições municipais de Porto Alegre merecem ser vistas sob o prisma
de uma verdadeira “marcha da insensatez”.
O PT em Porto Alegre não sofreu uma derrota qualquer; foi uma derrota
inclemente. E não foi uma derrota de um PT qualquer, mas a derrota de um PT que
acumulou a experiência de governar a cidade por 16 anos e que construiu
importantes referências para o país e para o mundo de resistências e de construção
de alternativas democráticas ao neoliberalismo.
O desempenho em
Porto Alegre não guarda absolutamente qualquer coerência com o padrão de
desempenho do Partido no Rio Grande do Sul e no Brasil. Tanto no estado como no
país, foi a sigla mais votada, a que mais ampliou o número de prefeituras
conquistadas e a que teve o maior incremento do número de vereadores eleitos.
Desde
sua fundação, em 1980, o PT participou com candidatura própria de todas as
eleições municipais em Porto Alegre [[1]].
Em 2012, o PT alcançou o pior desempenho em toda essa história eleitoral na
cidade. Até mesmo pior que da primeira vez que disputou o pleito, em 1985 - há
27 anos, nos primórdios da construção partidária. O candidato do PT no recente
pleito fez apenas 9,64%, o que significam 103.039 votos a menos que na eleição
anterior e 194.442 votos a menos que o desempenho histórico médio do PT. [Tabela I]
O PT também teve o pior
desempenho para a Câmara de Vereadores de PoA, elegendo a menor bancada desde
1988 [[2]],
reduzindo-a de 7 para 5 vereadores. E igualmente viu diminuir 27.418 votos da
legenda e 17.338 votos nominais de candidatos a vereador em comparação com a
eleição passada. [Tabela II]
Das oito eleições a prefeito municipal em
Porto Alegre nos últimos 24 anos [[3]],
é a primeira vez que o PT fica excluído do segundo turno, e a única vez
em que o candidato a prefeito do PT faz menos votos que os do Partido para a
Câmara de Vereadores [GráficoII]. É uma evidência de que menos eleitores dos
vereadores votaram no candidato a prefeito. Por isso, não seria razoável validar
a visão de que “ ‘quando se ganha, é mérito
do Indivíduo; e quando se perde,
a responsabilidade é do Partido’
”.
Em
2012, das 133 cidades do Brasil com mais de 200 mil habitantes, o PT disputou
eleições com candidatos próprios em 87 delas. Nessas 87 localidades, apenas 8
candidaturas tiveram desempenho inferior a 10%, e a de PoA foi uma delas. Com o
percentual de 9,64, somente conseguiu ficar à frente das candidaturas do PT em Campina
Grande, PB [1,17%], Vila Velha, ES [2,33%], Barueri, SP [2,36%], Imperatriz, MA
[2,83%], Campo Grande, MS [4,87%], Ananindeua, PA [5,24%] e Guarujá, SP [5,35%].
[Tabela III, em anexo]
***
Com tais
resultados, o PT de Porto Alegre foi o principal desvio do padrão nacional e
estadual, mesmo no contexto de um ambiente eleitoral submetido a influências
relativamente idênticas em todo o país. Não há um só fenômeno local que pudesse
ser relacionado com esta situação.
A conjuntura
eleitoral foi influenciada por uma pluralidade de fatores, tanto intrínsecos
quanto exteriores à candidatura do PT. Com pesos e ênfases diferenciados,
acabaram por determinar o resultado final.
A exploração
teledramatúrgica do chamado “mensalão”, por exemplo, ocorreu de norte a sul do
Brasil, de modo que as consequências eleitorais dessa questão, assim como de
outras questões espinhosas para o PT, teriam sido relativamente similares em
todo o país. Até se poderia presumir que em São Paulo o efeito possa ter sido mais
drástico, mas, mesmo assim, a candidatura do PT, que iniciou o processo
eleitoral com menos de 3%, disputará o segundo turno com reais condições de
vitória.
Por outro lado,
não existem indicadores de que o PT em PoA tenha deixado de ser preferido por uma
considerável parcela da população [entre 22% e 25% do eleitorado]. Isso
significa que 1 a cada 4 eleitores preferem o PT, mas somente 1 entre 10
eleitores votaram no candidato do Partido. Isso significa que o candidato do PT
foi rejeitado.
O que sim se
constata como fenômeno importante no campo da esquerda é o crescimento do PSOL [[4][.
Apesar da prática sectária e do “lacerdismo moralista”, parece se beneficiar da
convergência da política ao centro, atraindo eleitores petistas [e de outras
siglas] com discursos e propostas de esquerda. Esse parece ser um fenômeno
nacional, que é replicado no RS.
***
Neste cenário,
cabe perguntar: que outros fatores explicam a retumbante derrota do PT em Porto
Alegre? Seria improdutivo e arrogante menosprezar, neste sentido, os erros
cometidos pelo próprio PT no município.
A inclemente
derrota do PT em PoA é o ponto culminante de uma trajetória descendente que se iniciou
em 2000, quando houve uma primeira fratura interna. Nas eleições de 2008 e 2012
o PT sofreu uma erosão eleitoral na cidade. Assim como nas eleições de 2008, em
2012 o desempenho partidário ficou muito abaixo da média histórica do período 1985/2008
em todos os quesitos. [Tabela 1]
De outra parte,
a derrota deste ano condensa vários elementos da crise em que se encontra o PT
de PoA. É uma crise que vem de longa data, determinada pela diminuição da
capacidade dirigente e militante; pela perda de inserção nos movimentos sociais
e comunitários e, não menos importante, pela debilidade organizativa e de
direção. Se assiste à perda de organicidade e o comprometimento da capacidade
de intervenção e de iniciativa na realidade política e no debate público na
cidade.
Também contribui
para a diminuição da influência partidária o crescimento da hegemonia dos
partidos tradicionais, que se mimetizaram programaticamente. Com oportunismo,
distorcem a realidade e proclamam a continuidade das políticas gestadas pelo
PT. Aplicam o conhecido truque eleitoral de “manter o que é bom e mudar o que está mal”.
Todos estes
fatores pesaram na determinação da derrota, é verdade. Adicionalmente, entretanto,
deve-se reconhecer que a lógica partidária de instrumentalização da política
com o “repúdio da razão” está na raiz
desta crise. Recordemos Barbara Tuchman: “Nas
operações governamentais, a impotência da razão é algo muito grave, porque
afeta tudo aquilo que se encontra ao alcance — cidadãos, sociedade,
civilização. Era problema que preocupava profundamente aos gregos, iniciadores
do pensamento ocidental. Eurípedes, em suas últimas obras, concorda em que o
mistério do erro moral e da insensatez não pode ser atribuído a causas
externas, à peçonha de Ate — como se fosse uma aranha — ou a qualquer
intervenção dos deuses. Homens e mulheres têm que aceitar esse ônus como parte
da condição humana”.
O PT parece não
ter aprendido com os fracassos de eleições anteriores, quando a luta interna
por poder e por destruição dos adversários internos – em claro “repúdio da razão” – foi desenvolvida
cegamente, acima da realidade e desprezando a perspectiva estratégica. As
experiências das prévias partidárias para a escolha de candidaturas sempre
foram traumáticas, porque baseadas na confrontação pura e simples entre campos
internos, em alianças artificiais, em meras disputas por poder.
O processo para
a definição da candidatura do PT em 2012 repetiu os equívocos do passado. Baseou-se
no critério de maiorias artificiais, com maquinações e arranjos feitos da noite
para o dia e sem bases programáticas. Este método não leva em conta que a
sociedade, especialmente os setores simpáticos ao PT, presta muita atenção nas
escolhas que o Partido faz. E que, com sabedoria, apresenta a fatura amarga ante
escolhas equivocadas.
No “reino das
maiorias” não entra a razão e a análise diligente da realidade. Prevalece o
hegemonismo apoiado no cálculo para o controle da máquina partidária ou
governamental, quando conquistada. Repetindo novamente Barbara Tuchman: “Voltamos a Burke: ‘Não é raro que a
magnanimidade em política se torna a verdadeira sabedoria; um grande império e
mentalidades tacanhas não se combinam bem’. O problema está em se reconhecer
quando a persistência no erro se torna autodestruidora”.
As escolhas em
Porto Alegre, que finalmente se demonstraram equivocadas, apresentaram um
Partido confuso, sem política, sem programa, sem força de convocação militante
e social.
A lógica das
correntes e a visão particularista prevaleceram sobre o conjunto partidário. O
quadro eleitoral evidenciava que seria uma eleição difícil e, portanto, que
exigiria da candidatura do PT muito conhecimento público, densidade eleitoral e
uma capacidade de explicar com facilidade de compreensão algo que era complexo:
a confrontação de três candidaturas do campo democrático-popular.
Nesta condição,
como singularizar a candidatura do PT, como apresentar as diferenças e disputar
a consciência do povo? Ao contrário da diferenciação, ficou evidenciada a
pasteurização. Com a “semelhança” dos campos pró-Dilma e pró-Tarso, não se
soube explorar eficientemente a vinculação preferencial do PT com os governos
estadual e nacional. Esse fenômeno explica porque os votos da Manuela migraram
para o Fortunati [e não para o Villa], mas não foram para a oposição
conservadora aos governos Tarso e Dilma.
Não seria
correto atribuir o fracasso à tática eleitoral. A decisão sobre a candidatura
própria foi unânime no PT; todas as correntes e lideranças partidárias
defenderam esta posição. Candidatura própria não significa, em si mesmo,
garantia de vitória. Em toda a história do PT de PoA, o Partido sempre se
apresentou com candidatura própria. E neste período o Partido sofreu várias
derrotas – todas elas, todavia, eleitorais. A derrota de 2012, contudo, foi
uma hecatombe política, uma derrota política humilhante.
A pregação de
que o PT deveria ter abdicado da candidatura própria para ser vice de um dos
dois candidatos não tem consistência. Por um lado, porque a candidatura do
prefeito eleito articulou o campo conservador e dos setores anti-petistas,
inviabilizando uma aliança com o PT. A candidatura do PCdoB, por outro lado,
comprovou que não “havia chegado a hora”
da novidade sustentada em forte marketing eleitoral.
A aplicação da
tática eleitoral - ou seja, a candidatura, a estratégia e a política definidas
pela maioria partidária – além de se basear em métodos esgotados, revelou-se
inadequada às necessidades de um duro enfrentamento eleitoral. A eleição
comprovou que se o PT tivesse uma candidatura mais conhecida e identificada com
o legado dos governos do Partido na cidade, os resultados teriam sido
totalmente diferentes.
Seria muita
ingenuidade crer que qualquer que fosse a candidatura do PT o resultado seria o
mesmo. Em 2002, por exemplo, para a definição do candidato o PT que disputaria
a Presidência da República, o Partido foi constrangido a realizar uma
incompreensível prévia entre Suplicy e Lula. Alguém duvida que, se o candidato
não fosse Lula, o resultado teria sido outro?
***
Diante dessa derrota
inclemente, o PT não pode, outra vez, encontrar um refúgio confortável no silêncio
e na negação do fracasso. Novamente vale se socorrer de Tuchman: “A paralisação mental ou estagnação —
manutenção intacta pelos governantes e estrategistas políticos das idéias com
que começaram — é terreno fértil para a insensatez. Montezuma se constitui em
exemplo fatal e trágico”.
Ou o PT aprende
com os erros, ou as derrotas continuarão sendo o destino e a fonte da
autodestruição. Como também adverte Barbara, “a política fundada em erros multiplica-se, jamais regride”.
[[1]] Durante
a ditadura militar, ficou proibido até o ano de 1985 a realização de eleições
nas capitais, áreas de bases militares, de barragens de usinas elétricas e
regiões de fronteira, consideradas áreas de segurança nacional presumivelmente
passíveis de “ataques terroristas”. Os prefeitos municipais dessas cidades eram
então indicados pelos militares normalmente dentre políticos da ARENA – cuja
sigla sucedânea, depois de várias mudanças, é o atual PP. Em 1985 foi realizada
a primeira eleição direta em Porto Alegre depois da ditadura.
[[2]] A
primeira participação do PT em eleições para a Câmara de Vereadores foi em
1982, dois anos após sua fundação. Naquele ano, pelas razões assinaladas na
nota anterior, somente se realizavam eleições proporcionais nas áreas de
segurança nacional. Em 1982, o PT elegeu um vereador para a Câmara de PoA.
[[3]] Além
de 1985, foram realizadas eleições para prefeito municipal de PoA em 1988,
1992, 1996, 2000, 2004, 2008 e 2012. A partir de 1996, as eleições nas capitais
e cidades com mais de 200 mil eleitores passaram a ter dois turnos eleitorais
nos casos em que o candidato vencedor não atinja 50% + 1 dos votos válidos.
Um comentário:
Muito boa análise. Entretanto deveria dar nomes aos bois, pois senão continuarão fazendo a política dos erros prosperar. Os apoiadores do agora midiático Villa(nem sei quem é.... conheço o Adão Villaverde... é o mesmo???)deveriam fazer autocrítica e desembarcar dos cargos diretivos e voltar às bases, se é que algum dia tiveram. Realmente uma hecatombe vergonhosa.
Postar um comentário