terça-feira, 9 de julho de 2013

Depois da insônia das ruas, a tramóia da direita e do capital



Jeferson Miola

Os véus foram removidos; as máscaras que cobriam as reais intenções da mídia e da direita foram sacadas, e o jogo conspirativo finalmente está desnudo. Para a direita, as manifestações multitudinárias que deixaram as ruas brasileiras insones durante o mês de junho já cumpriram seu papel. Doravante, as ruas não precisam e, sobretudo, não devem ser ouvidas, porque atingiram o objetivo de “derreter Dilma”.
A Presidenta havia captado o essencial dos acontecimentos: a necessidade de reformar a política. O atual sistema político, concebido no contexto da transição conservadora da ditadura cívico-militar para a democracia liberal-burguesa, foi pactuado há 25 anos entre as distintas frações da classe dominante na Constituição de 1988 para blindar o país do “risco” de transformações democrático-populares radicais. [*]
Dilma anunciou a proposta de decidir por plebiscito se a reforma seria realizada por uma Assembléia Nacional Constituinte [ANC] específica. Menos de 24 horas depois, por razões não esclarecidas, recuou. O plebiscito passaria a ser, então, para definir o conteúdo da reforma a ser elaborada pelo Congresso que, sabe-se, é eleito pelo poder econômico e tem compromisso com a manutenção do sistema, não com sua mudança.
O combate à proposta de instalação de uma ANC não partiu somente da oposição [PSDB, DEM, PPS, Ministros do STF e mídia], mas sofreu forte contrariedade do próprio Vice-Presidente da República Michel Temer, do PMDB.
Derrotada a tese da ANC, em seguida veio o combate ao plebiscito por todos os lados. O Ministro tucano no STF Gilmar Mendes considerou a proposta “temerária” e “de difícil exequibilidade” - o TSE confirmou a militância pela tese dele. Merval Pereira, do jornal O Globo, chama de “tentativa de golpe antidemocrático” que faz do país “um arremedo de república bolivariana”. Michel Temer, após oficializar a entrega da proposta aos Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, nas entrelinhas de sua declaração, é como se dissesse: “todo o Poder ao Henrique Alves e ao Renan Calheiros!”. Leia-se: são oceânicas as chances do plebiscito desandar como maionese.
Para o governo, essa conjuntura se complica ainda mais pela variante econômica. As dificuldades políticas se cruzam com as complicações da economia brasileira derivadas da crise mundial. Depois dos tsunamis das ruas, são as placas tectônicas do capital que entram em frenesi.
A conexão entre as dificuldades econômicas e os impasses políticos está feita. Com sutileza, veículos de comunicação passaram a publicar pesquisas de opinião que instrumentam a narrativa para debilitar Dilma também na gestão da economia. O capital financeiro internacional é o novo ator que sai do subterrâneo para se juntar abertamente à farra conspirativa promovida pela direita e seus monopólios midiáticos.
A essas alturas, no debate agendado pela mídia, o que menos conta é racionalidade e honestidade política e histórica. Não importa invocar a maior resiliência do Brasil ante uma das piores crises do capitalismo; como também não faz diferença lembrar os colapsos do Brasil na era neoliberal de FHC em crises infinitamente menos graves.
A evolução complicada da conjuntura poderá ser destrutiva. Há uma grave urgência política no ar. A disputa real que se trava nesse momento é pelo destino da sétima economia mundial e pelo direcionamento de suas fantásticas riquezas para a orgia financeira neoliberal. Os atores da direita estão bem posicionados institucionalmente e politicamente. Ao apelarem pela preservação do establishment e do status quo da classe dominante, conseguem selar alianças com setores da coalizão de governo do PT.
A possibilidade de reversão das tendências está nas ruas, se soubermos canalizar sua enorme energia mobilizadora. Por que não instalar em todas as cidades do país aulas públicas, espaços de deliberação pública e de participação direta para construir com o povo propostas sobre a realidade nacional, o plebiscito, o sistema político, a taxação das grandes fortunas e do capital, a progressividade tributária, a pluralidade dos meios de comunicação, aborto, união homoafetiva, sustentabilidade social, ambiental e cultural, reforma urbana, reforma republicana do Estado e tantas outras demandas históricas do povo brasileiro, para assim apoiar e influir nas políticas do governo Dilma?
O PT e o conjunto da esquerda partidária e social do Brasil devem se esforçar para construir uma plataforma comum capaz de animar vigorosas mobilizações de rua em defesa das mudanças em andamento, mas especialmente na exigência das transformações democrático-populares represadas pelo enredamento em alianças pragmáticas.
A história é pródiga professora. Através dela conhecemos as consequências trágicas quando a divisão da esquerda e o sectarismo foram postos acima de exigências históricas e estratégicas. O momento pede fortalecimento do governo Dilma a partir da arena pública; fora dela a direita nos devora. O PT não pode cair na armadilha da mídia, que com suas pesquisas quer ferir de morte a Dilma, é verdade, mas quer principalmente trazer Lula para o epicentro dos acontecimentos, para assim poder sangrá-lo.
Durante a hecatombe de 2005, aprendemos que a resposta à virulência da direita fascista, profeta do “fim da raça dos petistas”, estava na radicalização da nossa presença nas ruas e no esclarecimento do povo quanto aos interesses de classe em disputa. Foi com esse arsenal que Lula derrotou Alckmin em 2006, impedindo o retrocesso neoliberal no Brasil.


[*] O PT, recém nascido, já representava uma ameaça à transição conservadora para a “etapa democrática” da dominação capitalista, e seria potencialmente o principal beneficiário das aspirações democráticas e transformadoras. Em 1989, a direita interditou tal trajetória do PT e, num golpe da Rede Globo, fraudou a vontade popular em favor de Collor de Melo.

Os vassalos do império



Jeferson Miola


A União Européia é a terceira potência econômica do mundo, mas suas elites conservadoras a colocam no 201º lugar em matéria de dignidade e civilidade. Acabam de promover uma ação que escandaliza não só por ofender o ordenamento jurídico internacional, mas por revelar a vassalagem da elite europeia aos caprichos imperiais dos EUA. Frente à hiperpotência dominante, se mostraram uma hipocolônia submissa.
Os dirigentes da Itália, França, Espanha e Portugal proibiram o avião do Presidente do Estado Plurinacional da Bolívia, Evo Morales - que retornava da Rússia depois de participar de um encontro de países exportadores de gás -, de sobrevoar os respectivos espaços aéreos dos seus países, por suspeita de estar dando carona a Edward Snowden.
Colocaram a vida do maior mandatário da Bolívia em risco, cometendo o crime de tentativa de magnicídio. O governo de François Hollande, embora tenha autorizado o plano de vôo do avião de Evo em 27/06, cancelou a autorização quando a aeronave já se aproximava do espaço aéreo francês ontem, 02/07, obrigando o avião presidencial fazer um pouso emergencial em Viena, na Áustria.
O “preço de captura” de Edward Snowden vale o atentado contra um presidente de uma nação latino-americana porque ele é um cidadão estadunidense que foi técnico da CIA, depois trabalhou para uma empresa prestadora de serviços de segurança e espionagem para a CIA e denunciou ao mundo que seu país [EUA] bisbilhota e controla o tráfego de informações da telefonia, internet e redes sociais em todo o planeta.
François Hollandé é daquelas lendas urbanas criadas pela mídia faceira e colonizada. Assim como com Barack Obama, que se revelou uma decepção monumental correspondente às ilusões superlativas da sua eleição, com François Hollande se sucedeu o mesmo. O alívio subjetivo do povo francês com o fim do período soturno de Sarkosy gerou mais que expectativas positivas com a vitória de Hollande, mas uma verdadeira miragem dum deserto previsível da tradição conservadora do Partido Socialista Francês, que é parte da equação neoliberal da Europa, e não alternativa a ela.
Hollande, subserviente, se agachou ante a hiperpotência que espia ilegalmente seu próprio povo através do Facebook, Google, Skype, Youtube, Twiter. Desonra a França do iluminismo, da ilustração, da racionalidade, das luzes, da democracia. E mancha a história do país com as marcas do obscurantismo obssessivo-paranóico dos EUA.
A Presidenta Dilma correspondeu ao gigantismo moral deste Brasil que “não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia e Paraguai”, como afirmou Chico Buarque, e expressou a “indignação e repúdio ao constrangimento imposto ao Presidente Evo Morales por alguns países europeus, que impediram o sobrevôo do avião presidencial boliviano por seu espaço aéreo, depois de haver autorizado seu trânsito”.
Afirmando que essa “atitude inaceitável é grave desrespeito ao Direito e às práticas internacionais e às normas civilizadas de convivência entre as nações”, a nota da Presidenta Dilma completa que “causa surpresa e espanto que a postura de certos governos europeus tenha sido adotada ao mesmo momento em que alguns desses mesmos governos denunciavam a espionagem de seus funcionários por parte dos Estados Unidos, chegando a afirmar que essas ações comprometiam um futuro acordo comercial entre este país e a União Européia”.
E, finalizando, diz que “o constrangimento ao Presidente Morales atinge não só à Bolívia, mas a toda América Latina. Compromete o diálogo entre os dois continentes e possíveis negociações entre eles. Exige  pronta explicação e correspondentes escusas por parte dos países envolvidos nesta provocação”.
A manifestação do governo brasileiro honra a grandeza do país e reforça seu papel ativo na construção de um mundo multipolar, com paz, respeito às soberanias, liberdade de expressão, sem impérios, sem imperialismos e sem colonialismos. O Brasil bem que poderia conceder o asilo político solicitado por Edward Snowden - daria um salto na afirmação desses valores e na liderança positiva do Brasil na região e no mundo.
Fossem outros os tempos, como na época de FHC, aquele Brasil colonizado e subserviente não só falava fino com Washington, como sofria a humilhação de ver seu Chanceler tirar o sapato em procedimento de revista para poder ingressar nos EUA em missão oficial!

A espiral dos acontecimentos e a urgência política



Jeferson Miola

Junho de 2013 será o preâmbulo de exatamente o que, no Brasil? Aqui, a esquerda, ou algo que se define como tal, já está no poder. O que vem agora? O Marx tem uma frase: se uma nação inteira pudesse sentir vergonha, seria como um leão preparando seu bote. Uma nação envergonhada dos seus políticos e das suas mazelas está inteira nas ruas. Resta saber para que lado será o bote desse leão.
Tempos interessantes, tempos interessantes.
Luis Fernando Veríssimo, na crônica “Cadê o De Gaulle”?

1.
Políticos, governantes, analistas, mídia e toda a sociedade fomos assomados por sentimentos de estupefação e ambiguidade ante as mobilizações que incandesceram o Brasil no mês de junho de 2013. Os eventos foram se sucedendo com impressionante velocidade e assumindo morfologias em constante variação, dificultando sobremaneira a interpretação a seu respeito.
Aquelas mobilizações do início do ano contra o aumento das tarifas de ônibus, lideradas por militantes do movimento estudantil em algumas capitais do país, foram o estopim desse processo que experimentou seu ápice nesse mês.
As mobilizações se espraiaram de maneira surpreendente para todos os estados do Brasil e assumiram um caráter multitudinário e em perseverante expansão. A permanência ruidosa no espaço público com várias mobilizações semanais é uma marca incontrastável desse processo.
Em 25 de março, não mais que 300 jovens interditavam a Avenida Ipiranga em Porto Alegre em protesto contra o aumento da tarifa de ônibus de R$ 2,85 para R$ 3,05. Em 20 de junho, já eram mais de 2 milhões protestando em pelo menos 100 cidades brasileiras. Algo muito além de 20 centavos mobilizava as multidões que passaram a ocupar a cena pública brasileira então com maior ímpeto e com aspirações mais abrangentes. Desde 1992, no impeachment de Collor, não se via no Brasil manifestações de massa de tal magnitude.
É difícil conhecer ao certo os vetores da expansão e radicalização. Uma explicação pode ser a rápida vitória do movimento em algumas capitais, conseguindo reduzir os preços da passagem de ônibus. Os governos foram obrigados a ceder, e a insurreição foi colecionando vitórias em cascata. Tais vitórias, todavia, não aplacaram o ânimo dos manifestantes, mas os encorajaram ainda mais - descobriram que a luta coletiva consegue vergar governos.
A violência policial contra os manifestantes pode ter sido outro fator estimulante, porque ativou a solidariedade política entre manifestantes de distintas cidades e mexeu com a liberdade de protestar. Neste aspecto, a repressão selvagem da polícia militar de SP no dia 13 de junho é um marco importante. Depois do 13 de junho, as ondas crispadas dos dias precedentes se converteram em tsunamis, e se espraiaram pelo país.



2.
A agenda de reivindicação foi continuamente se expandindo. Da luta contra a tarifa de ônibus, passou a reivindicar transporte urbano público e de qualidade, para então politizar a caótica condição de [i]mobilidade urbana e o pesadelo em que se transformou a vida nas cidades.
Essa dinámica, que vinha sendo marcada com uma pauta de esquerda, foi surpreendida com a adesão de novas legiões de manifestantes - em sua maioria jovens de classe média - que se jogaram às ruas com bandeiras contra a corrupção, a política e “contra tudo o que está aí”.
Uma conjunção de características indica a índole autoritária de certos grupos de protestantes, instrumentalizados pela direita e incensados pela mídia. Alguns aspectos são reveladores da inspiração ultranacionalista e neonazista de tais agrupamentos: o rechaço aos partidos políticos e aos movimentos sociais; o enaltecimento febril dos símbolos nacionais; a tônica lacerdista de combate à corrupção; a violência contra militantes de esquerda, etc.
No vazio de direção política das manifestações e diante da surpreendente ausência dos movimentos sociais tradicionais, esses agrupamentos reacionários tentaram disputar o rumo do processo.
As juventudes negras e afrodescendentes não figuram na “fotografia” das manifestações com o peso demográfico que têm na sociedade brasileira. Ou seja, os segmentos mais pobres - que são, também, os principais beneficiários das políticas de igualdade dos 10 anos dos governos do PT – aparentemente ainda não colocaram seu bloco na rua.

3.
Junho termina com “um leão preparando seu bote”. Um forte mal-estar - nem tão difuso, nem tão inespecífico, e, menos ainda, indecifrável - é notado na sociedade brasileira.
A crítica ao sistema político de maneira geral; o cansaço com a conciliação política, com as negociatas, com a troca de favores, com o loteamento de cargos, com os privilégios, com a impunidade, com campanhas milionárias, com a corrupção, com o chamado mensalão; o incômodo com os Renans, Felicianos, Demóstenes, Sarneys, Malufs; o desprezo com a confusão de um Vice-governador de um governo do PSDB sendo ao mesmo tempo Ministro de um governo do PT; a saturação com o caos urbano e com a vida estafante nas cidades; a contrariedade com a construção de estádios suntuosos enquanto faltam atendimentos no SUS, escolas públicas, salários dos professores; o não-reconhecimento do tatu-bola como símbolo nacional e a revolta com as ingerências da FIFA, etc, são insatisfações persistentes na sociedade brasileira, mas que finalmente encontraram nas mobilizações um lugar de confluência e de extravasamento.
Como assinala Veríssimo: “Uma nação envergonhada dos seus políticos e das suas mazelas está inteira nas ruas”. A grande interrogação é: “para que lado será o bote desse leão”?
Num ambiente como esse, é natural que o desgaste atinja principalmente os partidos com maiores responsabilidades institucionais de governo, como é o caso do PT. Mas é inegável que a mídia tem tido – e terá ainda mais - um peso determinante na construção de uma narrativa desgastante, concentrando a insatisfação contra o PT, quando se sabe que é uma insatisfação generalizada contra os governantes, contra os parlamentares e juízes e, sobretudo, a saturação com todo um sistema político e institucional.
A direita permaneceu silente enquanto o país ardia. A mídia fez, por ela, todo o serviço conspirativo: construiu a agenda opositora, articulou seu bloco na rua e canalizou a insatisfação contra o governo federal e o PT. A mídia golpista pendulou entre criminalizar a vanguarda do movimento e politizar a revolta contra o governo Dilma, buscando associar a insatisfação difusa das ruas com os 10 anos de governos do PT.
4.
Em meio à espiral complexa dos acontecimentos, a Presidenta Dilma agiu com visão estratégica e sensibilidade histórica. Em meio à estupefação, ela soube apreender, mais que ninguém, o “espírito dos acontecimentos” e os movimentos subterrâneos das classes sociais.
Parece ter assumido a primazia política e, se conseguir emplacar uma agenda potente, poderá reposicionar o debate em favor de mudanças evitando o risco de retrocesso, que é uma hipótese que também paira no horizonte.
A Presidenta entrou em cena em três momentos, e acertou nas mensagens. O primeiro momento foi em 18 de junho, depois das manifestações que fervilharam as ruas de mais de 100 cidades na noite anterior. Com coragem, afirmou que “o país amanheceu mais forte”, e reconheceu que “o governo precisa ouvir as vozes das ruas”. No vocabulário empregado pela Presidenta, não se encontra uma palavra de intimidação ou repressão, mesmo que a situação já fosse, àquela altura, muito tensa.
Com esse gesto, ela redimiu o governo federal do equívoco cometido pelo Ministro da Justiça que, dias antes, colocou a Força Nacional de Segurança à disposição da lógica autoritária e repressiva do Governador Alckmin.
O segundo momento foi em 21 de junho, em pronunciamento dirigido ao povo brasileiro em cadeia de rádio e TV, depois de outra noite de ruidosas manifestações. No discurso, enalteceu a energia política do povo nas ruas, condenou os desvios praticados por alguns depredadores e se comprometeu a criar um ambiente de diálogo com representantes dos movimentos, com governadores, prefeitos, autoridades dos poderes legislativo e judiciário e partidos políticos, para a discussão de uma agenda capaz de responder às “vozes das ruas”.
Finalmente, em 24 de junho Dilma instalou um ambiente de diálogo político que poderá marcar a história do país. O governo federal assumiu a condução dos debates e instituiu um espaço amplo público para a discussão democrática das principais urgências do país.
Dilma entendeu que o espírito das ruas valia mais que 20 centavos. Ela soube interpretar que o sentimento de insatisfação e de mal-estar generalizado é provocado por um sistema político carcomido que desvirtua a representação popular e mercantiliza a política.
Além das propostas para educação, saúde, mobilidade urbana, equilíbrio fiscal e combate à corrupção, o pacto proposto pela Presidenta Dilma incluiu a proposta de plebiscito para a deliberação pública sobre a reforma política. Em seguida, infelizmente, o governo [cedeu a pressões?] e recuou da idéia original de realizar uma consulta plebiscitária para decidir a convocação ou não de uma Assembléia Nacional Constituinte [ANC] específica para a reforma. Tudo indica que o plebiscito será realizado para consultar a população acerca do alcance e conteúdo da reforma política, que ficará a cargo do atual Congresso Nacional.
Nesse junho de 2013, o Brasil contemporâneo deu um passo para a maturidade democrática. O país ficou ainda melhor que aquele Brasil da senzala do condomínio neoliberal do PSDB, DEM e PPS, no qual a repressão substituía políticas públicas e o Exército protegia os leilões de venda de empresas estatais a amigos do poder por preços vis.
No seu tempo, a direita respondia às revoltas populares contra as privatizações, contra a destruição neoliberal do Estado e a supressão de direitos criminalizando os movimentos sociais e militarizando as ruas. Um trabalhador sem-terra que lutasse pelo acesso à terra era marcado com ferrete e removido do cadastro de acesso ao tíbio programa de reforma agrária de FHC.


5.
O sistema político brasileiro faliu. A preservação desse sistema, mesmo falido, interessa, entretanto, à classe dominante, que faz um jogo cínico de crítica ao mesmo. Com a hegemonia conferida pelo poder econômico na representação parlamentar, a elite consegue interditar as mudanças democráticas e populares. A eleição de maiorias parlamentares pelo poder econômico é a maior garantia da preservação da ordem jurídica de dominação do capital.
Nesse sistema deformado, as alianças entre tradições partidárias contraditórias – e mesmo antagônicas – são impostas como “fatalidade” para a sustentação no Congresso, no que se poderia chamar de “parlamentarização da política”. Não se governa com programas, mas com a renúncia de princípios, identidades e valores e mediações pragmáticas. Esse é a razão que explica, por exemplo, as coalizões governamentais do PT que incluem inclusive partidos que sustentaram a ditadura militar, em nome da canonizada “governabilidade congressual”, que usurpa a “governabilidade das ruas”.
A geléia geral na política – ou a convergência da política ao centro - desencanta, deseduca e desestimula a participação política das juventudes nas instituições políticas convencionais. E é substrato para a formação duma cultura autoritária e crente em aventuras ditatoriais mágicas.
É inadiável uma reforma política com financiamento público exclusivo de campanhas e limites de gastos; votos em listas partidárias; proibição de coligações proporcionais; unicameralismo; fim dos privilégios e impunidades, entre outros aspectos. Essa é a proposta defendida pelo PT há anos, que não consegue formar a maioria necessária para aprová-la.

6.
A mídia já agendou o debate e orquestrou a reação contra a proposta da Dilma. O discurso do chamado “mundo jurídico”, dos articulistas, intelectuais e políticos da oposição conservadora é um monocórdio alarmista que mistura juridiquês com preconceitos contra o PT e a esquerda. “Alertam” que a participação do povo para discutir política e decidir os rumos do país é parte de um plano bolivariano e ditatorial [sic].
A reação conservadora é prova que Dilma palmilha o lado certo. Ela soube capturar o “espírito das ruas” e canalizou a dispersão política para o elemento essencial da disputa em curso. Durante a incandescência das ruas, a mídia dissimulava ter compromisso com a bandeira da moralização da política. Pura retórica. No fundo,seu objetivo fundamental foi articular o sentimento então difuso, dar-lhe orientação política, canalizar a revolta contra o PT, gerar uma sensação de caos e inviabilizar a reeleição de Dilma em 2014. É a versão brasileira do neogolpismo latino-americano, experimentado anteriormente em Honduras, no Paraguai e na Venezuela “no marco das leis e dentro da institucionalidade”.
O agendamento da reforma política com participação plebiscitária do povo desarticula a direita e recupera a iniciativa política da esquerda, dos setores progressistas, democráticos e republicanos. O lugar das mudanças deixou de ser os gabinetes, escritórios dos executivos do grande capital e as sedes das empresas de comunicações, para se alojar nas ruas.

7.
A pressão popular, por isso, adquire um peso ainda maior na vigilância dos interesses democráticos e populares. Deve ser potencializada, principalmente se a reforma for debatida pelo atual Congresso Nacional e não num órgão específico como seria uma ANC.
As possibilidades de se avançar nas mudanças virão das ruas. E é também nas ruas que se arma a resistência contra o retrocesso ensaiado através da manipulação midiático-cibernética da direita e seus monopólios de comunicação.
Os partidos de esquerda e os movimentos sociais, fortemente institucionalizados e burocratizados, não conseguiram perscrutar os acontecimentos, e ficaram à margem dos fatos iniciais. A grande tarefa, a partir de agora, é retomar seu lugar nas ruas mostrando sua identidade – com suas bandeiras, com radicalidade e coragem.
Estamos desafiados a compartilhar horizontalmente essa nova arena pública com a geração militante emergente que pela primeira vez protesta nas ruas, politizando essas juventudes, sendo por elas educados e entendendo suas formas diferentes de organização política. O PT tem identidade com o processo. As principais bandeiras agitadas são bandeiras originárias do PT, e foram abandonadas pelo Partido em nome de mediações que hoje cobram um preço alto.
O conjunto da esquerda partidária e social, mas especialmente o PT, tem diante de si uma enorme responsabilidade nessa conjuntura. As guinadas hiper-pragmáticas do PT que desfiguraram para pior sua fisionomia e o mimetizaram com os partidos tradicionais, estão na raiz da saturação do povo com a política em geral e na rejeição ao PT em particular, que deixou de ser identificado com os sonhos de transformações com ética na política.
Para se conectar com a realidade reclamada nas ruas, o PT deve humildemente ser autocrítico, reconhecer os equívocos cometidos por alguns dirigentes e assumir o compromisso de corrigir seus erros. No artigo “O PT na contramarcha da liquefação política” [Agência Carta Maior, 17/01/2013], dizíamos que “A reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade é o principal antídoto contra a liquefação política no contexto da ‘modernidade líquida’. E, também, garantia de que o Partido não se transforme num simples e mais um partido da ordem – risco alertado por Florestan Fernandes na eventualidade do PT abdicar dos valores que constituem e que justificam sua origem”.
Se o PT desperdiçar a oportunidade do próximo PED [Processo de Eleições Diretas] para revisar seu rumo e reencontrar sua vocação com a ética na política, poderá sofrer uma condenação imperdoável pelo povo que depositou nele a esperança pela transformação histórica do país.

8.
O PT no governo federal tem uma responsabilidade e igualmente uma oportunidade diferenciada. Por um lado, tem de compatibilizar a perspectiva do desenvolvimentismo com mecanismos de democracia participativa. As mobilizações mostram um povo que quer o desenvolvimento, mas ansia decidir a qualidade desse desenvolvimento. A consigna “quando seu filho adoecer, leve-o a um hospital padrão FIFA” estampada em cartazes de manifestantes, é evidência disso. Desprezando essa demanda democrática, nem mesmo os notáveis avanços das políticas sociais dos governos Lula e Dilma nesses anos – pleno emprego, acesso à Universidade, à cultura, ao consumo, ao crédito, ao turismo, lazer, etc – serão capazes de arrefecer a insatisfação contra o governo.
O governo Dilma está também diante da expectativa de políticas urbanas que desprivatizem o espaço público, qualifiquem os serviços públicos e democratizem o acesso aos bens comuns. As cidades são o território das contradições fundamentais entre o público versus o privado, o capital vs trabalho, o direito vs mercado, o coletivo vs individual, o ônibus vs o carro.
É também necessário reconhecer que o modelo de coalizão prejudica bastante a imagem do governo no imaginário social. O modelo baseado num arranjo partidário que hipertrofia o ministério para abrigar políticos seculares do atraso brasileiro em nome da sustentação congressual, é outro aspecto que cobra seu preço. A delicada situação política cobra da Presidenta Dilma decisões de impacto, como por exemplo iniciar a reforma política pelo próprio Poder Executivo. Deveria correlacionar a “republicanização” do governo ao aumento da sustentação popular, tornando o Estado mais poroso ao controle social e menos suscetível a arreglos anti-republicanos.
Dilma deveria invocar o compromisso solidário dos demais poderes, para que assumam compromissos nessa mesma direção e eliminem privilégios, adotem princípios plebeus na gestão da coisa pública e combatam impunidades. O Brasil reclamado nas ruas não aceita regalias conferidas a esposas de Ministros do STF, que viajam ao estrangeiro de primeira classe às custas de dinheiro público. Os escandalosos privilégios de deputados e senadores contribuem para a descrença na política e a consequente emergência de uma perigosa cultura política autoritária, ditatorial.

9.
O Brasil está diante de uma exuberante circunstância histórica. O eventual desperdício das oportunidades existentes será mais prejudicial ao PT e ao conjunto da esquerda, porque essa agenda terá centralidade na eleição de 2014.
O país precisa agregar novas instâncias de democracia direta para a expressão dos desejos, vontades e “urgências que não cabem só nas urnas”, nos parlamentos, nos palácios, nos gabinetes, etc, porque já não representam as aspirações que emergem das ruas brasileiras.
O jogo está armado, as ruas estão em disputa e o horizonte do país a ser desenhado – a questão é saber para qual “lado será o bote desse leão”. A luta pelos interesses das classes, mais que em outras circunstâncias da história brasileira, está sendo travada com os holofotes da presença do povo na arena pública.
A direita se movimenta rapidamente. Reage contra o plebiscito e contra todas as saídas que tenham a presença do povo na sua deliberação. Prognosticam o fim do governo [em outros tempos, profetizavam o “fim da raça” de petistas] e, com sua mídia monopólica, encampam o mantra do “derretimento” da Presidenta Dilma e do PT no “asfalto das ruas”.
A situação efetivamente é complexa para o governo e para o PT, mas longe do cenário intimista pintado pela mídia. A questão é saber se e como o governo consegue reverter as tendências desfavoráveis. A Presidenta Dilma, que deu passos decisivos nas últimas semanas, necessita renovar sua capacidade de iniciativa e de liderança política.
E isso somente é possível aprofundando as mudanças em andamento e as já assumidas, mas também pondo na mesa o debate sobre as agendas represadas, como: a taxação das grandes fortunas e do rentismo para financiar uma política nacional de transporte público gratuito; a definição de limites para a extensão das propriedades rurais e a revisão dos índices de produtividade para garantir a soberania alimentar; a democratização do acesso à informação e a pluralidade dos meios de comunicação; as liberdades civis relativas ao aborto, drogas, união homoafetiva; a sustentabilidade ambiental e social dos empreendimentos energéticos e de infra-estrutura; programa nacional de educação em tempo integral; reforma urbana com taxação progressiva sobre a especulação imobiliária para ampliar o financiamento das políticas de saúde, educação e segurança, etc.
A vitória reeleitoral de Dilma em 2014 será uma possibilidade tão mais real quanto maior for sua capacidade de liderar a continuidade com aprofundamento das mudanças clamadas nas ruas.